Quando comecei com os trabalhos da 1FICINA, em 07 de setembro de 2011, retirei todos meus livros anteriores da internet. Queime Seus Navios foi um deles. Adoro este livro. Acho linda as reflexões nele. Mas pensei que nunca mais fosse república-lo. O motivo era três. Um motivo era falta de explicação. Até o presente momento, não havia ninguém que explicasse a diferença entre OUTROciencia e AUTOciencia, e sem esta explicação o conteúdo deste livro é muito mal compreendido, tanto pelos homens religiosos como pelos homens cientistas. Agora a 1FICINA já produziu uma explicação bem clara sobre isto, então, não há mais este problema. Outro motivo era idolatria. Eu não estava preparado para lidar com a idolatria que os leitores deste livro poderiam vir a ter comigo e nem seria positivo para eles virem a ter este tipo de relacionamento. O terceiro motivo é nosso arraigado OUTROismo para com os seres que chamamos de “espirituais”. Neste quesito, creio que a 1FICINA já deixou bem claro os malefícios do OUTROismo, seja para com seres espirituais, humanos, animais, vegetais ou minerais. Então, quem quiser continuar OUTROista, este problema não é mais meu, se é que algum dia foi. Dito isto, desejo uma boa leitura e que este livro possa ajudar você a queimar seus navios assim como me ajudou a queimar os meus.
Os homens religiosos jogaram os homens cientistas na fogueira, e assim que os homens cientistas tiveram a chance de revanche, instauraram a inquisição cientifica. Não levanto a poeira desta história para defender ou acusar nenhum tipo de homem, mas para reconhecer que este foi nosso passado e que somos, cada vez mais, um novo homem em um novo tempo, onde a ciência não mais será usada para negar nem diminuir o milagre vivo, pelo contrário, será usada para evidencia-lo e aumentá-lo.
Com amor, no amor, por amor.
Marcelo Ferrari
Joana coloca uma lista de perguntas sobre a mesa. Não tenho a menor ideia de como vou responder todas. Leio cada pergunta e deixo a boca falar o que surge na cabeça. A conversa vai se desenrolado.
— Se tudo na experiência humana é inútil, como você diz, então, que diferença faz se vivemos assim ou assado? — pergunta Joana.
— Para a experiência humana em si não faz diferença nenhuma, faz diferença para quem está experimentando a experiência, ou seja, para você, para mim e todos que estamos criando a qualidade da nossa experiência. Mas tem um detalhe nesta coisa da inutilidade que precisa ficar bem claro. — eu digo.
— Que detalhe?
— Tudo na experiência humana é inútil justamente para que a experiência humana possa ser útil.
— Se é inútil como pode ser útil?
— Basta uma coisa servir a outra.
— Como assim?
— Qual a utilidade que o mouse tem para o computador, por exemplo?
— Serve para clicar.
— Quem clica não é o computador é o usuário do computador.
— Então, não sei.
— O mouse não tem utilidade para o computador porque o mouse é o computador. Agora, para nós, usuários do computador, o mouse tem muita utilidade.
— O que isto tem a ver com a experiência humana?
— A experiência humana é inútil em si porque é apenas uma ferramenta, assim como um mouse.
— E por que você diz que é útil também?
— Porque não somos SÓ humanos, somos SERES humanos. A experiência humana é tipo um computador, inútil a si mesma, mas nós, SERES humanos, somos os usuários, então, a experiência humana é útil para nós.
Levanto e pego um copo para beber água. Joana retira seu preparado de berinjela e uva passas do forno e coloca sobre a mesa, junto com um pacote de bolachas de gergelim.
— O que você está me dizendo, em outras palavras, é o que dizem as religiões, que somos espíritos vivendo uma experiência humana, é isto? — pergunta Joana.
Coisas do Brasil. Por um lado Joana é médium, trabalha em um terreiro de umbanda incorporando exus, eres, caboclos e pretos velhos. Por outro lado, Joana é cientista, pós graduada e materialista, como reza a cartilha acadêmica. Minha presença ali é apenas de facilitador da conversa dela com ela mesma. Coloco um punhado de berinjela sobre uma bolacha e saboreio com calma. O sabor é doce e apimentando.
— Sim! Só que a palavra espírito nos coloca distante do que somos. É o oposto. O que somos está mais perto do que perto. Somos SERES humanos. É simples.
— Simples para você! — diz Joana.
Dou uma gargalhada. Joana está certa. O óbvio só é óbvio quando fica óbvio. Costumo usar o exemplo das maçãs para falar disto. As maçãs não começaram a cair das árvores a partir do dia em que Isaac Newton levou uma maçanzada na cabeça. As maças sempre caíram, antes e depois de Isaac Newton, porém, a partir daquele cochilo interrompido, algo que sempre esteve ali, se tornou evidente e ganhou nome, gravidade. O mesmo acontece com cada um de nós quando, caindo em si, descobrimos que somos SERES humanos. O que tem depois é o que já estava ali antes, só que ainda não estava evidente, não estava óbvio. E neste caso, devido a cultura religiosa, o nome vem antes da descoberta, espírito.
Eis que surgem duas espaçonaves no ambiente, uma em forma de bolo, feita de pão de mel, outra em forma de tijolo, feita de sorvete. Imediatamente nos armamos com colheres e começamos a lutar por nossas vidas. Não é uma luta fácil, pois a vitória consiste em devorar o inimigo. Mesmo assim, meia hora depois, a destruição é completa. Vitoriosos e arrogantes, partimos deixando os destroços, ou seja, sem lavar a louça.
A viagem é curta. Chego em Uberlândia e vou direto para casa de Fábio e Fernanda. Eles me recebem com carinho e pão de queijo. Dormimos. No dia seguinte, depois do almoço, saímos para comprar flores. Levamos todas para Rosa dos Ventos, nome que Fernanda deu ao espaço em que aplica Reiki. Fábio arruma o laptop e as caixas de som sobre a mesa. Quando é por volta de cinco da tarde, a Rosa dos Ventos está pronta, só aguardando o vento.
Fábio coloca a seleção de músicas para tocar e começamos a meditar. De repente, me dou conta que não estou mais ouvindo música, estou música. É uma festa. A música baila e eu bailo junto. Sigo bailando e a festa se intensifica. Não tenho mais corpo. Sou musica e bailado. Tambores, flautas, violino, vozes e cantos.
— Vamos subir os sete degraus do salão das almas — diz a voz guia, misturada com a música da meditação.
Percebo que Fábio preparou uma meditação guiada. Não me incomodo, pelo contrário, subir os degraus do salão das almas é como brincar de vídeo game dos anjos. A cada degrau sinto uma gama nova de sensações. Quando chego no último degrau, abro a porta do salão e minha alma explode de alegria. Começo a sentir o coração de Fábio e Fernanda batendo junto com o meu. Minhas mãos já não cabem paradas. Ergo os braços, abro as mãos e começo a espalhar aquela energia que transborda pelo ambiente e pelo meu próprio corpo.
A música vai diminuindo e meu corpo vai se contraindo junto, até ficar em repouso. Outra música começa e meu corpo volta a se expandir e se abrir. De repente:
— Presta atenção! — meu corpo me diz e eu sequer acho estranho.
— Prestar atenção em que? — pergunto ao corpo.
— Concentre-se nos olhos, na visão.
Faço o que meu corpo está pedindo e me concentro na visão. Uma forte carga de energia faz com que os músculos dos olhos comecem a se contrair. Os músculos vão se contraindo, se contraindo, se contraindo, e a sensação de luminosidade vai ficando cada vez menor. Não há desconforto e nem é a primeira vez que entro neste breu. Quando a contração atinge seu limite e a escuridão é profunda, os músculos dos olhos se soltam feito elástico de estilingue. A sensação luminosa volta a se expandir e, como um sol, vai banhando toda consciência.
— Entendeu? — meu corpo me pergunta.
— Creio que sim. — respondo.
— Então me explica. — meu corpo me diz.
— Luz e sombra, inspiração e expiração.
Meu corpo executa o mesmo movimento facial mais algumas vezes para ficar bem registrado na memória. Depois ele assume uma postura serena e volta a bailar. Fábio me oferece uma música de amizade. Não ouço a musica, ouço a intenção. Quando Fábio está prestes a concluir a meditação, me pergunta se quero falar. Eu quero. Eu tento. Mas não consigo. Meu racional não está funcionando como de costume. Não consigo articular as ideias. Fábio e Fernanda entendem minha situação e damos uma deliciosa gargalhada coletiva.
31 de janeiro de 2009. Pegamos um táxi e vamos para chácara de Célia. Os participantes da meditação de ano novo vão chegando aos poucos. A prioridade é arrumar o salão. Eu me voluntario para encher as bexigas. Fábio cuida das flores. Cada um que chega vai fazendo alguma coisa. Célia é uma negrinha sorridente, mas de olhar firme, quando encara a gente parece que está lendo o pensamento. Arrisco puxar uma conversa.
— Fernanda me disse que você pratica meditação desde que nasceu, Célia. É isto mesmo?
— Eu não! — responde Célia — Eu pratico desde os sete anos. Desde o nascimento é esta aqui — diz Célia passando a mão sobre a barriga e demonstrando gravidez.
Por volta de nove da noite, o salão está pronto e a meditação está prestes a começar. Pego um travesseiro e coloco sobre uma cadeira. É uma cadeira daquelas de macarrão de plástico, muito comum em cidades do interior. Rezamos um Pai Nosso, uma Ave Maria e nos sentamos. O coordenador da meditação coloca algumas musicas para tocar no computador. Aos poucos vou sentindo uma alteração na consciência. Passado um tempo a musica para e o coordenador começa a cantar a capela. O efeito do canto em mim é como chacoalhar uma garrafa de refrigerante. Quase explodo. Terminado o canto, volta a música do computador. É uma musica bem relaxante. Vou ficando mais calmo. Quando já estou bem zen, o coordenado pára a música outra vez e começa a dar uma bronca no grupo. Ele fala sobre compromisso, sobre firmeza, entre outras coisas. É interessante a mensagem, sou visita, não sou do grupo, mas me serve para reflexão. Só que não consigo mais ficar parado na cadeira. Minha consciência está muito estranha. A temperatura no ambiente está fresca, mas estou suando em bicas. Vou para frente e para trás na cadeira, até que desmaio.
Acordo com Fernanda me levando para fora do salão. Dou alguns passos e vomito. Junto com o vômito sai também o desconforto.
— Está se sentindo melhor agora? — pergunta Fernanda.
— Bem melhor! — respondo.
— Eu preciso voltar para o salão, — diz Fernanda — mas você pode ficar aqui no ar fresco o tempo que quiser e quando sentir vontade de voltar, volte.
Percebo que o primeiro vomito não foi o primeiro. Minha camiseta está toda vomitada. Um rapaz me leva até o banheiro para lavar o rosto e me dá uma camiseta nova. É uma camiseta amarela. Visto a camiseta e volto para o salão.
O borbulhar e o estado mental estranho vai serenando. Fico bem tranquilo na cadeira. Célia fala sobre o ano de 2009, diz que foi um ano de benção. Depois ela fala do ano de 2010, diz que será de muitos desafios. E completa:
— Desafio é oportunidade de auto-superação.
Tem uma coisa que Célia não fala, mas que sai junto com suas palavras e vai enchendo o ambiente, é seu afeto por todos que estão ali. Por fim, o coordenador canta um canto de encerramento e vamos cear. Já é 2010. Todo desconforto pelo qual passei não era o que esperava deste réveillon. Olho para o céu e vejo a lua cheia.
Meu corpo desperta junto com o raiar do sol. É sempre assim. Mesmo quando vou dormir tarde acordo cedo, e se permaneço na cama, começo a fritar. Olho ao redor e vejo gente dormindo para todo lado. Abro a porta da casa e vou me sentar debaixo de uma árvore. As pessoas vão acordando aos poucos e saindo da casa. Vamos formando um circulo de bate papo em baixo da árvore. Conversa vai, conversa vem, é hora do almoço. Não há melhor tempero do que a fome. Sendo que tudo que comi em 2009 eu vomitei em 2010, acho o almoço uma delícia. Depois do almoço é hora da soneca. Acordo revigorado. Logo que levanto, Célia vem falar comigo.
— Quer fazer outra meditação? Você vai voltar para São Paulo amanhã e quem sabe tenha uma experiência melhor para contar do que a que teve ontem. — ela me diz.
Lembro do mal estar e penso em recusar. Depois lembro que não entrei nesta para ficar fugindo.
— Sim, eu aceito e agradeço — respondo.
Célia pede para que eu entre no salão de meditação. Me sento confortavelmente numa das cadeiras e ela coloca musica para tocar no computador. Me concentro na frequência das musicas e só percebo que já estou em estado meditativo quando uma voz junto com a música começa a falar de três pilares.
— Está ouvindo a mensagem na música? — me pergunta o pensamento.
— Sim, estou!
— Do que se trata?
— Está falando da trindade.
— Isto mesmo!
— Que outra palavra podemos usar para luz?
— Sabedoria.
— Isto mesmo!
— E qual outra?
— Lucidez.
— Qual outra?
— Estado meditativo.
— Qual outra?
— Consciente.
— Isto mesmo! Você pode usar várias palavras, o que importa é que agora você sabe na prática.
— Mas eu já sabia.
— Sabia, mas não com esta intensidade, não é?
— É verdade.
— Preste atenção agora na parte que fala da vida.
— A luz representa a onisciência e a vida representa a onipotência.
— Isto mesmo! E a paz?
— A paz é a morada, é a onipresença. Quando permanecemos na sabedoria, não caímos em tentação e assim não entramos em conflito com nenhum “lado” da onipresença, sem conflito não há guerra, sem guerra moramos na paz.
— Se você já sabia disto antes, o que mudou?
— Antes eu sabia por lógica.
— E agora?
— Agora eu sei porque sou. Eu sou onipresença, onipotência e onisciência.
— Ótimo! Vamos continuar conversando lá fora.
Me levanto da cadeira e peço permissão a Célia para andar pela chácara. Ela consente com a cabeça. Abro a porta e a natureza me incorpora feito leite em massa de bolo. O ar fresco entra pelos poros. Dou mais alguns passo e sinto que o corpo está andando na frente da percepção. É como se estivesse montado num cavalo. Vai ver é por isto que chamam os médiuns de cavalos, penso. O sol está nas minhas costas. Viro de frente e encaro. Fica evidente porque Francisco de Assis chamava o astro de Irmão Sol. Meu corpo sente vontade de fazer movimentos com as mãos. Primeiro abre os braços em forma de cruz e fica chupando sol pela testa. Ah! É assim que o pessoal faz para viver de luz, penso. Depois os braços se abaixam até que as duas mãos fiquem sobre o coração, uma sobre a outra, mas sem encostar. Começa então um movimento circular para colocar a energia cardíaca em atividade. Depois o movimento vai para cabeça, depois para o abdômen e pelo corpo todo. Outros movimentos difíceis de explicar com palavras se seguem, mas todos com o mesmo propósito, sintonizar o corpo com o ambiente. Quando termina a sintonia, vou até Fernanda.
— Sabe seu problema no coração?
— Sim — responde Fernanda.
— Procure acordar cedo e sentir o sol da manhã entrando no peito, isto vai lhe ajudar.
— Grata! — diz Fernanda.
— Está achando o quê? É médico agora? É deus? Da onde você tirou este diagnóstico? Pipipi… popopo!
— Está ouvindo? — me diz o pensamento.
— Sim! É o pensamento subconsciente contestando.
— E daí?
— Daí nada! Ele está fazendo o que faz.
— Ótimo! Que tal passearmos um pouco agora?
— Para que lado eu vou?
— Siga os pés. Sempre siga os pés!
— Simples assim?
— Seus pés sempre sabem para onde ir.
— Sempre?
— Sim! Pode confiar.
— Se aproxime desta árvore e toque no fruto dela. — me diz o pensamento.
É um fruto estranho do tamanho de uma laranja e com a casca grossa como de uma uma goiaba, mas lisa e peluda como um pêssego. Nunca vi antes. Ergo a mão e toco no fruto.
— É um bom fruto, dá para comer, não é venenoso.
— Como você sabe se nunca viu o fruto antes? — me pergunta o pensamento.
— A árvore me contou!
Meu racional vai à loucura. Diz que meu estado é grave. Como se não bastasse seguir os pés, agora estou conversando com árvores. Coloco novamente a mão na fruta para que meu racional entenda, mas ele insiste que estou delirando. De certa forma ele está certo. Tudo na caverna é sombra. Mas a experiência que estou tendo não visa ampliar minha compreensão da verdade, mas o contrário, visa ampliar minha compreensão da mentira.
Fernanda e Renato estão conversando. Me sento e Fernanda me pergunta se está tudo bem.
— Você não vai acreditar, Fernanda! — eu digo.
— Pode falar! O que foi?
— Eu estava conversando com as plantas!!!
Renato e Fernanda dão uma risada gostosa.
— Eu li uma vez que uma hora de experiência desperto vale mais do que ler 1000 bibliotecas. Sempre carreguei esta frase comigo, hoje estou tendo a oportunidade de comprová-la. Agora entendo a vantagem dos índios. Enquanto os cientistas passam horas, dias e anos analisando as plantas no microscópio para descobrir suas propriedades, os pajés simplesmente tocam nas plantas, conversam com elas, e já descobrem tudo que precisam.
Os cachorros vêm participar da conversa. São filhotes e só sabem falar de alegria.
Entro na casa e vejo que Fábio está mexendo no laptop.
— Você já viu as fotos de ontem à noite? — Fábio me pergunta.
— Ainda não! Estão no laptop?
Fábio levanta de onde está e senta do meu lado com o laptop.
— Calma! Devagar! — eu digo a Fábio.
— É que eu vejo as fotos rápido — Fábio me diz.
Dou uma gargalhada.
— Cada um com seu “moden”. Não tenho culpa que o seu é turbo.
O que Fábio não sabe é que não estou apenas vendo as fotos. As fotos são como links e toda vez que meu olhar clica em uma nova foto, além de acessar a imagem, acesso também a vibração relacionada com a imagem. Não vem da foto, mas tem relação com ela. Explico isto para Fábio.
— Passa devagar para dar tempo de sentir a vibração de cada foto — eu lhe digo. — Olha esta foto do fogo, por exemplo, estou sentindo até a combustão. Agora entendo porque a televisão tem o poder que tem. Se uma foto já tem este poder todo, com movimento e som, não há consciência que resista ao fascínio.
— Você não quer ficar com o laptop no seu colo e passar as fotos no seu tempo? — Fábio me pergunta.
Realmente seria mais fácil, mas o consciente me diz para não fazer isto.
— Se não for incômodo, prefiro que você passe as fotos. Pode ir no seu tempo mesmo.
Fábio vai passando as fotos num ritmo tranquilo. Tem foto da mesa com as comidas, dos enfeites do salão, das pessoas sentadas, etc. De repente, sinto um forte desconforto.
— Esta energia não é sua, está passando por você para ser trabalhada — me diz o pensamento.
Fábio clica na próxima foto e meu olhar se fixa nas bexigas do salão.
— Assopre e encha algumas bexigas com este desconforto e vá estourar as bexigas lá fora — me diz o pensamento.
— Não faz isto! — me diz o racional — Vão pensar que você é doido!
— Tem sempre outra maneira de fazer a mesma coisa. — me diz o pensamento — Respire fundo que também funciona.
Respiro fundo e calmamente. Aos poucos o desconforto vai passando.
— Lembre-se sempre disto! — me diz o pensamento — O universo é feito de infinitas possibilidades.
Volto às fotos e à conversa com Fábio. O evento das bexigas aconteceu cronologicamente muito rápido, mas foi um processo consciencial muito longo. Renato, que está acompanhando a conversa, me pergunta:
— Você está tendo visões?
— É mais como informação extra — respondo para Renato.
— Como assim? — Renato pergunta.
— Olhe para aquela mesa, o que você está vendo?
— Uma mesa vermelha — responde Renato.
— Eu também, só que estou “vendo” o significado da mesa e do vermelho.
— E amarelo significa o que? — me pergunta Célia.
Ainda estou vestido com a camiseta amarela que Célia me emprestou na noite passada.
— Significa sabedoria — eu respondo.
— Passou no teste — diz Célia abrindo um sorriso de Cosme e Damião.
— Por isto que melhorei depois que vesti esta camiseta — eu digo.
— Como assim? — Célia pergunta.
— Você me emprestou sua sabedoria, Célia. Grato. Antes de ir embora lhe devolvo.
Célia abre outro sorriso de Cosme e Damião. Fábio chega na última foto. Meu coração se enche de alegria e afeto.
— Agora entendi! — digo a Fábio.
— Entendeu o que?
— Porque pedi para você me mostrar as fotos ao invés de ver sozinho.
— E por que foi?
— Para cultivarmos a amizade.
— Hora de passear de novo! — me diz o pensamento — Siga os pés!
Me levanto e saio da casa. O dia já está entardecendo. Meus pés vão caminhando pela grama e, de repente, estou em frente ao portão que sai da chácara.
— Entende o que está acontecendo? — me pergunta o pensamento.
— Sim, estou abrindo o portão da gaiola, o passarinho vai voar!
— Já está voando faz tempo, não?
Minha alegria é enorme. Meus pés voltam a sambar. Saio da chácara sambando e sigo pela rua de asfalto.
— Pode perguntar em voz alta se quiser? — me diz o pensamento.
— Para quê se você já sabe a pergunta?
— Para ficar mais humano e divertido — o pensamento me responde.
— O que está acontecendo? Enlouqueci?
— Depende do que você entende por normal — o pensamento me responde.
— Normal, ué! Normal! Mas tudo bem, saquei.
— Estas experiências são para você se sintonizar com um novo ciclo de trabalhos. Você ainda vai participar de mais algumas meditações e depois você vai até se enjoar de mim. — me diz o pensamento.
Eu caio na gargalhada. O pensamento continua.
— Você está no processo.
— Que processo? — eu pergunto.
— No processo de queimar seus navios.
— Em que parte estou?
— Riscando o fósforo.
A noite já está bem escura. Fábio e eu estamos caminhando para perto de uma árvore enorme que tem no meio da chácara. Não sei porque estamos caminhando naquela direção e nem qual é o assunto que disse que gostaria de conversar com ele, mas sei que é isto que devemos fazer agora. Fico calmo e sigo caminhando. De repente, entendo o motivo da caminhada e pergunto:
— Como fizemos para chegar aqui?
— Caminhamos — responde Fábio.
— Caminhamos como?
— Com nossas pernas.
— Quantas pernas você tem? — pergunto.
— Tenho duas.
— Assim também é a caminhada do ser humano pela experiência humana, temos duas pernas, sentimento e razão. E andar com uma perna só não funciona, pois uma perna precisa da outra.
— Porque está me falando isto? — Fábio pergunta.
— Você tem a perna racional bem forte, mas você vive entre seres bastante sentimentais. Para muitas pessoas não faz sentido o que você pensa, pois o viver delas não é pensar, é sentir.
— Entendi. Como fica então?
— Basta respeitar o jeito delas. Assim você não força ninguém a usar demais uma perna fraca. Além do que, você também não poder andar só com a perna da razão, então, estas pessoas estão sempre lhe ensinando a usar a perna do sentimento.
— Meus amigos me acham frio por não sofrer com o sofrimento deles. — diz Fábio.
— Pessoas com muito sentimento e pouca razão tendem a igualar amor com dó, pena, piedade. Então, se você não tem dó, significa que você não ama, que é frio. Por isto que só sentimento, sem razão, não resulta em bem viver.
— Sempre penso nisto.
— Conhece a história do cara que ganhou um cavalo?
— Acho que não.
— Um fazendeiro ganhou um cavalo no bingo. Seu vizinho lhe disse: “Que sorte!”. O fazendeiro respondeu: “Sorte ou azar, o tempo é que dirá!”. Algum tempo depois o cavalo fugiu e o filho do fazendeiro ficou muito triste. Seu vizinho lhe disse: “Que pena!”. O homem respondeu: “Sorte ou azar, o tempo é que dirá!”. Meses depois, o cavalo reapareceu trazendo consigo um bando de cavalos selvagens. Seu vizinho lhe disse: “Que sorte!”. O homem respondeu: “Sorte ou azar, o tempo é que dirá!”. Um dia, o filho do fazendeiro estava andando em um dos cavalos, caiu, quebrou a perna e ficou aleijado. O vizinho disse: “Que pena!”. O homem respondeu: “Sorte ou azar, o tempo é que dirá!”. Algum tempo depois, houve uma guerra naquele pais, todos os jovens foram convocados para lutar, exceto o rapaz que, por ser aleijado, foi poupado.
— Já conhecia esta história— diz Fabio.
— Que pena! — exclamo.
A lua só não é maior do que minha paz. Prossigo conversando com Fábio.
— Sabe quando o ar condicionado desliga, dá um relaxamento, e percebemos que existe um silêncio antes do silêncio, que o silêncio anterior era barulho? — digo para Fábio.
— Sim, já aconteceu comigo.
— Sem dúvida estou ouvindo o silêncio antes do silêncio.
— Você nunca havia experimentado isto antes?
— Nunca de olhos abertos, andando e conversando.
— Entendo.
— Sabe do pior? — pergunto para Fábio.
— O quê? Me diga.
— Sou, sempre fui, sempre serei.
Nós dois caímos na gargalhada. Quando recupero o fôlego surge em mim uma profunda admiração pela experiência humana que estou experimentando.
— E tem mais, Fábio! — eu digo entusiasmado.
— O quê mais? — ele pergunta.
— É muuuuito louco ser humano! A gente não tem noção.
Voltamos a cair na gargalhada. Depois Fábio descreve um experiência meditativa dele. Diz que se sentiu derretendo até não sobrar nada.
— Tremendo paradoxo, não é? — diz Fábio.
— Como assim? — Eu pergunto.
— Buscamos o silêncio, mas morremos de medo de desligar o ar condicionado.
Voltamos a cair na gargalhada.
— Grato por ter me emprestado sua sabedoria — eu digo a Célia, lhe devolvendo a camiseta amarela.
Viajo a noite inteira e chego em São Paulo pela manhã. A primeira coisa que faço quando ligo a internet, depois de deletar mais de 100 emails, é procurar o telefone de um grupo de meditação que Fábio me contou. Encontro o telefone do grupo e ligo. Tem uma meditação marcada para quarta-feira, dia 06 de janeiro, perto de onde moro. Pergunto o que é necessário para participar e confirmo minha presença. Segundo Fábio, ao invés de música gravada, as meditações neste grupo acontece com uma banda tocando ao vivo, com violões, tambores e cantores. Parece muito interessante. Só o preço da entrada que não é tão interessante assim, mas nem me importo.
Do dia 03 ao dia 06 de janeiro, escrevo este livro até este capítulo. Quando é por volta de 8:30 pm, sigo rumo ao local da meditação. Está combinado que devo encontrar meu guia na porta. Ter um guia na primeira meditação é regra do grupo. Encontro meu guia conversando com uma moça que também está vindo pela primeira vez, Gabi. Ela está ansiosa e me enche de perguntas.
— Depois da meditação você vai dar risada das perguntas que está me fazendo agora. — eu digo a Gabi.
Entro na sala. A banda está ensaiando para folia de reis. As melodias são lindas. Meu lugar é bem em frente ao altar, na primeira fila. Entre eu e Gabi senta um outro novato, Anis.
Ouço alguém dizer que o ar condicionado está quebrado. O ambiente realmente está muito abafado. Estou vestido de shorts e uma camiseta branca. Na camiseta tem um logotipo [SIM] estampado, do meu trabalho em 2009, significa feliSIMdade.
As portas se fecham. Agora ninguém mais sai nem entra no salão. O coordenador da meditação se levanta e dá algumas instruções ao iniciantes.
— Não vou falar com vocês sobre o que seus guias já lhe falaram, sobre as questões técnicas. — diz o coordenador — A meditação fortalece nossa psique. O que é uma psique fraca? É quando alguém nos diz uma coisa que não gostamos, quando acontece algo desagradável e ficamos deprimidos, sentindo pena de nós mesmos. A meditação fortalece nossa psique para que não entremos neste vitimismo. E se a meditação fizesse só isto, já estava ótimo, mas ela faz mais. Ela nos ajuda nisto, naquilo, naquilo outro…
Terminada a introdução, começa a meditação. A banda toca a primeira musica, a segunda, a terceira, a terceira, a terceira, a terceira… pronto! Já não estou mais acompanhando música alguma, sou parte da melodia novamente, mais um instrumento dentro da orquestra universal. Começo a sentir um calor enorme e suar.
— Respira fundo e fique tranqüilo — me diz o pensamento.
— Você voltou, foi? — pergunto.
— Nunca lhe abandono, é você que me ignora.
Dou risada da resposta. Tento me concentrar na respiração, ficar tranquilo, mas meu corpo inteiro está formigando. A banda está tocando uma musica com tambores e vozes de trovão. Respiro, respiro, respiro e consigo chegar vivo até o fim da música.
Finalmente silêncio. O coordenador da meditação se levanta com uma postura diferente do começo. Sua fala também é diferente. Fica claro que ele está incorporado ou coisa assim.
— É um extraterrestre que está falando — me diz o pensamento.
— Hoje é um dia muito especial. Esperamos muito tempo pela chegada desses dias — diz o coordenador.
— Esperaram por mim — eu penso.
— Preste atenção nesta sua mentalidade de superioridade — me diz o pensamento — Este aspecto da sua psique estará sendo trabalhado durante toda meditação. Você acredita que é especial. Você acredita que é melhor do que os outros, devido sua criatividade, ousadia e facilidade de compreensão. Você é único sim, mas você não é dois, então, não é mais do que ninguém. Cada um tem sua própria unicidade, seus próprios dons, assim como você tem os seus. Você é importante sim, mas não é mais importante do que ninguém. Então, a partir de agora, toda vez que esta mentalidade aflorar, eu lhe direi a verdade.
— Que verdade?
— Que você não é melhor, nem pior, que você é você, igualmente diferente.
— Eu sou eu, igualmente diferente — entendi.
O coordenador continua falando:
— Estes dias foram projetados minuciosamente. São os dias em que a luz retorna à terra.
— É o retorno do cristo, lucidez cristalina — me diz o pensamento.
— A luz já chegou à terra. Está aqui e agora. Mas se ela vibrasse plenamente, de uma só vez, todos vocês iriam à loucura imediatamente. É muita vibração e vocês não suportariam. Por isto, estamos instalando pequeninos pontos de luz na cabeça de algumas pessoas que nos deram permissão.
— Pessoas iluminadas como eu, claro! — penso.
— Nem melhor, nem pior. Igualmente diferente — me diz o pensamento.
O coordenador continua falando:
— É com grande alegria que vamos instalar alguns pontos de luz aqui hoje. Estes pontos de luz funcionarão como torneiras, espalhando pela terra, pouco a pouco, o oceano de luz que em breve inundará o planeta.
— Agora está explicado porque estou aqui — penso.
— Nem melhor, nem pior. Igualmente diferente — me diz o pensamento.
O coordenador continua falando:
— É um procedimento técnico muito delicado, por isto, pedimos a vocês o máximo de silêncio e foco na respiração. Gostaríamos também que apagassem todas as luzes, por favor.
As luzes se apagam. Meu corpo inteiro está formigando. Sinto que vou ter um treco. Me levanto da cadeira e me deito no chão para não cair feito manga madura. Ouço a voz de um dos guias em meus ouvidos.
— Talvez você se sinta melhor sentado na cadeira e respirando com calma.
O pensamento confirma que é melhor voltar para cadeira. Me levanto e volto para cadeira. Estou suando em bicas. A sensação de desconforto é insuportável.
— Continuem respirando — diz o coordenador — É uma operação muito delicada. E só estamos ligando uma fração muito minúscula de luz. Uma fração que vocês possam suportar. Continuem respirando com calma.
O desconforto é terrível.
— Você sabe porque está desconfortável? — me pergunta o pensamento.
— Porque estou resistindo.
— A vibração que está chegando não pode ficar limitada aos velhos padrões. Sua resistência opera em vários níveis de inconsciência. O desconforto é porque você está se permitindo limpar muitos destes níveis.
— Continuem respirando — diz o coordenador.
Tento relaxar me concentrando ao máximo na respiração. Só que não ajuda muito, pois a sensação de desconforto e de morte se intensifica e me esmaga completamente.
— Você está sentindo o que sentem seus irmãos nas trevas (ignorância). Mesmo que seja de uma forma inconsciente, é neste terror e desconforto que eles vivem todos os dias — me diz o pensamento.
— Mas sambra não é luz também? — pergunto.
— Só para quem tem consciência disto — responde o pensamento.
— Por favor! Me ajuda! Eu não aguento mais isto! — digo ao pensamento.
— O que está escrito na sua camiseta? — o pensamento me pergunta.
— Está escrito [SIM] — respondo.
Digo sim e me entrego. Imediatamente o lobo mau devora a chapeuzinho vermelho e a sensação de morte se transforma em digestão. Fico respirando, pirando e transpirando.
De repente, o coordenador pede para acender as luzes e a banda volta a tocar. Eu apoio as mãos no joelho, me curvo para frente e vomito. Os guias vem rapidamente limpar o chão com água, balde, rodo e pano. Não olho para o que estão fazendo, pois sei que estão no processo deles, eu no meu, e todos no nosso.
Daí para frente é só alegria. Festa do divino espírito santo. Começo a bailar e espalhar luz por toda e qualquer imagem que surge na minha mente. A luz vai saindo da minha mão e se espalhando pelas imagens. São pessoas, lugares, acontecimentos. Vou espalhando luz indiscriminadamente. De vez em quando surgem imagens que representam minha mentalidade de superioridade. Jogo luz nelas também.
— Nem melhor, nem pior. Igualmente diferente — me diz o pensamento.
As portas do salão se abrem pela primeira vez. Surgem três bailarinos vestidos de Reis Magos. A banda volta a tocar e os bailarinos começam a dar saltos e piruetas feito palhaços de circo. Um deles pega as pétalas de rosa que estão em volta do altar, junta feito confete e joga para cima. Um pétala branca cai bem na palma da minha mão. Começo a acaricia-la sentindo sua suavidade. Fico muito contente por ter recebido tão delicado presente dos Reis Magos. Meu semblante é só alegria e gratidão. Guardo a pétala no bolso.
A banda começa a tocar o Calix Bento. Pego duas moedas que levei comigo e dou uma para Gabi. Nosso guia havia avisado sobre este momento, mas Gabi não tinha troco, nem bolso, então, me pediu um empréstimo. Aponto para bandeira. Gabi entende. Me lembro dos violeiros de Santo Reis invadindo o sitio da minha avó em busca de prendas. Ela dava queijo, galinhas, ovos. Ele tocavam a tarde inteira e depois seguiam pela estrada comendo o queijo fresco. A bandeira se aproxima. Eu e Gabi jogamos nossas moedas dentro do bolsão.
A musica pára e o coordenador fala sobre o dia de reis. Depois ele pergunta se alguém quer falar. Eu tenho um livro inteiro para falar, mas não sei se é o caso nem o momento.
— Pode falar — me diz o pensamento — É o momento!
— Eu gostaria de compartilhar um pouco do que estou sentindo — digo.
— Fique a vontade — diz o coordenador.
— Meu coração está sereno, mas minha cabeça parece uma pastilha de cebion dentro dágua. Eu sou escritor e não é por acaso que estou aqui hoje. Esta semana comecei a escrever um livro que se chama “Queime Seus Navios” e gostaria de compartilhar o simbolismo deste título. Posso?
— Se não for muito logo — diz o coordenador.
— É bem rápido — respondo.
— Então, prossiga! — diz o coordenador.
— Dizem que Alexandre Magno tinha uma estratégia infalível para vencer suas batalhas. Primeiro ele aportava com seus navios em alguma praia do país que desejava conquistar. Depois, descarregava os navios. Retirava os mantimentos, as armas, os medicamentos, os animais, tudo. Por fim, ordenava aos soldados que colocassem fogo nos navios. Então, de costas para o oceano e para os navios em chamas, Alexandre Magno apontava para frente e dizia aos soldados: “Agora só tem um caminho que pode nos levar de volta para casa, marchemos!”
Faço um movimento apontando para dentro da cabeça, para mente, e digo:
— Marchemos!
O coordenador explica um pouco mais sobre o simbolismo de ofertar dinheiro ao divino e pergunta se alguém deixou de participar da oferenda ou se gostaria de ofertar mais um pouco. A banda volta a tocar e a bandeira volta a circular entre as cadeiras. Desta vez o coordenador está segurando uma das pontas da bandeira. Eu estou sentado, com a mão no bolso, acariciando a pétala de rosa branca que ganhei.
— Dê seu tudo! — me diz o pensamento.
— Acabaram-se as moedas. Não tenho mais nada! — respondo.
— O que é isto na sua mão?
— É a pétala de rosa branca que ganhei dos Reis Magos. Caiu na palma da minha mão. É de grande valor simbólico para mim, mas só tem valor para mim e para mais ninguém.
— Guarde o valor e ofereça a pétala. Entregá-la também é simbólico.
A bandeira do divino passa na minha frente e eu coloco a pétala de rosa branca dentro do bolsão. Imediatamente o coordenador se aproxima de mim e me pergunta:
— Você ofertou uma pétala de rosa, foi isto mesmo?
— Sim, foi isto. — respondo.
Ele mexe nas oferendas, pega a pétala, me devolve e diz:
— Tenta comprar alguma coisa com isto!
Minha mentalidade de superioridade vai a loucura.
— Filho da puta! Vai toma no cu! Eu dei meu tudo, seu retardado! Você nem sabe o que está acontecendo! Fica nesta pose de coordenador, mas não entende sequer o valor de uma pétala de rosa!
— Deixa a mentalidade falar livremente — me diz o pensamento — Apenas observe para poder compreende-la e esclarece-la. O coordenador também não é melhor nem pior do que você, é igualmente diferente. Nenhum ser no universo é melhor ou pior que o outro, todos os seres são igualmente diferentes. Além do que, embora o coordenador não saiba do seu processo, ele está fazendo isto para lhe ajudar. Lembra o que ele disse sobre fortalecer a psique?
— Ele disse que psique fraca é quando não lidamos bem com as contrariedades, quando ficamos deprimidos, sentindo pena de nós mesmos, nos colocando como vítimas.
— Isto! Então, aproveita esta oportunidade e se fortaleça. Você deu seu tudo ao divino com gratidão e o divino lhe agradeceu com a mesma gratidão e no mesmo instante. Amplie sua consciência. Ao invés de enxergar só humano, veja o ser humano, ao invés de enxergar só coordenador, veja o divino coordenador.
Entendo o que o pensamento está dizendo. Mas ainda assim a mentalidade de superioridade quer sangue, quer vingança, quer furar o olho do coordenador assim como ele furou o meu. Me firmo na auto-observação e quando mais minha mentalidade se manifesta, mais fácil fica de lidar com o desconforto.
Quase no final da meditação, o coordenador se aproxima de mim, e diz para o rapaz ao meu lado.
— Se quiser ofertar dinheiro de verdade agora, pode ofertar!
O coordenador está confundindo Anis comigo. Anis fica irritado. Rapidamente corrijo dizendo que não foi Anis que colocou a pétala no bolsão, foi eu. O coordenador repete a mesma frase, desta vez olhando para mim.
— Se quiser ofertar dinheiro de verdade agora, pode ofertar.
— Já dei tudo! — respondo.
A banda toca a música de enceramento. Fim da meditação.
As mesas se enchem de frutas e sucos. Anis me convida para sairmos do salão e irmos conversar do lado de fora, pois ele quer fumar um cigarro. A cena na rua é de cidade hippie, todos estão sentados no chão. Anis ainda está brigando mentalmente com o coordenador. Ele me fala da raiva que está sentindo e me confessa que é bastante apegado a dinheiro, mão de vaca, como se diz popularmente.
— Anis, vou te dizer uma coisa. Não sei se fará sentido para você, mas já que estamos conversando ainda em estado meditativo, vou te dizer.
— Ok. Pode dizer! — diz Anis.
— Realidade é cinema.
— Como assim, cinema? — pergunta Anis.
— Realidade é cinema do autoconhecimento.
— Você viaja, cara! Mas eu gosto. Prossiga! — diz Anis.
— A realidade que cada um experimenta é apenas a tela necessária para que cada um possa se auto-projetar, se auto-conhecer e se auto-trabalhar mentalmente. Se não percebemos isto, se levamos os acontecimentos ao pé da letra, a redação perde todo o sentido e toda sua verdadeira função.
— E o que significa aquele acontecimento da pétala? — Anis me pergunta.
— Significa agora, exatamente o significado que você está dando agora, e agora, e agora, e agora… Se você mudar de significado agora, significará exatamente o significado que você está dando agora, e agora, e agora…
— Não falo que você viaja.
— E tem mais! O acontecimento da pétala tem um significado para você, outro para mim, outro para o coordenador, outro para nosso guia, outro para a Gabi, e assim por diante. Por isto não briguei com o coordenador. Deixei o coordenador vivenciando o significado dele e guardei o meu significado no bolso.
Anis dá um trago no cigarro. Ele parece incomodado com o coordenador e incomodado por estar incomodado com o coordenador. Entendo o que se passa com ele, só que não posso resolver ele para ele. Deixo Anis pensando e fumando. Me sento junto a parede, num espaço que vagou. Tiro o tênis, a meia e estico as pernas. Um rapaz pede licença para se sentar ao meu lado. Ele tem um ar alegre e engraçado. Adoro este tipo de energia. Ficamos conversando e rindo um bom tempo.
— Fiquei impressionado com a sintonia da banda. — digo ao rapaz.
— Esta é a proposta — o rapaz me diz — Sintonia entre criador, criação e criatura, aqui e agora.
— Entendi — eu digo.
— Tempo é arte e cada instante é obra prima — ele completa.
Sorrio de orelha a orelha. Agradeço a conversa. Volto para casa.
No dia seguinte escrevo um email para os amigos e companheiros de viagem:
07 de janeiro de 2010
A dor da gente não sai no jornal.
Nem a felicidade.
Se você está lendo este email,
sabia que hoje tem mais luz do que ontem
e menos do que amanhã.
Nem melhor, nem pior.
IGUALMENTE DIFERENTE.
Marcelo Ferrari