Terceira margem do rio

23/11/2020 by in category Bosta não evapora, Capitulos tagged as , , with 0 and 0

A primeira vez que produzi um clip da música Shangrilá, eu morava em um sítio com minha avó. No sítio ao lado morava Sebastião, irmão mais velho dela. Bastião, como todos o chamavam, acordava todo dia bem cedo para fazer caminhada na rodovia vicinal que passava em frente o sítio. Ele andava dois quilômetro em uma hora, ida e volta, arrastando os chinelos pelo asfalto. Dava tempo de ordenhar todas as vacas do sítio e Bastião ainda não havia terminado sua caminhada matinal.

A paciência vagorosa de Bastião me encantava. Era como se ele caminhasse cantando a música Shangrila. Então, certo dia, peguei minha filmadora e gravei ele caminhando até chegar na porteira do sítio. Depois peguei a gravação, acrescentei a música Shangrilá e carreguei no youtube. Foi o primeiro clipe da música. A versão atual dessa música é com outra gravação e outro vídeo, mas a caminhada de Bastião permanece na minha memória como fonte de inspiração.

Bastião era caipira pira pora, mas caminhava como um discípulo budista, dando passinhos de zazen. “Será que todo caipira é iluminado?” eu pensava. Minha avó também era iluminada. Ela tinha até mantra para expressar o caminho para iluminação. Ela dizia: “Devagar é pressa”. Sabe quando uma pessoa querida te abraça calorosamente numa situação de estresse e te diz: “Calma! Está tudo bem”. Eu sentia o mesmo conforto ouvindo o mantra da minha avó.

Mas onde quero chegar com tudo isso? Quero chegar em Shangrilá e explicar a diferença entre paciência e passividade. Contei tudo isso para introduzir e ilustrar o tema. O que desejo esclarecer é porque paciência é uma virtude e passividade não.

Primeiro vamos entender o que é passividade.

Imagine que você está jogando xadrez. Passividade é a crença equivocada de que você não precisa fazer nada para ganhar o jogo, que um milagre irá pensar por você, mexer suas peças por você, jogar por você e ganhar por você. Passividade é esperança. É esperar que algo ou alguém irá fazer por você o que só você pode fazer por você: viver sua vida. Por isso que passividade não é virtude.

Passividade é sua vida sem você. Passividade é você sentado no banco do passageiro assistindo os outros e as circunstâncias dirigirem sua vida. E pior! Na maioria das vezes, dirigindo sua vida para o lugar oposto de onde você deseja estar.

Por isso que muitas vezes você perde a paciência, berra, esperneia, roda a baiana e parte para briga. Você pensa: “Passividade não, passividade nunca, passividade jamais!”. Seu pensamento está correto, pois passividade não te ajuda mesmo. É preciso ter atitude para ser autor da própria história. Mas não é perdendo a paciência que você consegue isso.

Voltando ao jogo de xadrez, você deve agir para jogar e ganhar o jogo. Você deve pensar, optar e mover suas peças. Mas isso é na sua vez de jogar. Uma vez que você moveu sua peça, sua vez acabou e começa a vez do outro. É a vez do outro pensar, optar e fazer a jogada dele. Nesse momento do jogo, quando é a vez do outro jogar, não há nada externo que você possa fazer, pois você não controla o arbítrio do outro. Nesse momento do jogo, a única coisa que você pode fazer é ter paciência.

Eis o desafio do jogo da convivência. Conviver é igual dirigir carro no trânsito, você dirige seu carro, mas só dirige o seu, não dirige o carro dos outros. Quando você esquece disso ou ignora isso, é impossível ter paciência.

Passividade é fruto do medo, paciência é fruto da lucidez. Passividade é quando você se proíbe de agir por medo da reação do outro. Paciência é quando você sabe que é impossível agir pelo outro e por isso nem tenta. Quem olha para você de fora vê o mesmo comportamento: não-ação. Mas na paciência você fica em paz com a não-ação e na passividade você fica contrariado.

No livro Sidarta, de Hermann Hesse, tem uma linda passagem sobre a paciência. Sidarta está procurando emprego e vai conversar com um comerciante:

– O que você sabe fazer? – pergunta o comerciante.

– Sei pensar, sei esperar, sei jejuar. – responde Sidarta.

– E que valor tem saber isso? – pergunta o comerciante – O jejum, por exemplo, para que serve o jejum?

– O jejum é a coisa mais inteligente que se pode fazer para quem não tem o que comer. Se eu, por exemplo, não tivesse aprendido a suportar a fome, seria obrigado a aceitar hoje mesmo um serviço qualquer, seja na tua casa, seja em outro lugar, já que a fome me forçaria a fazê-lo. Mas posso aguardar os acontecimentos com toda calma. Não preciso ficar impaciente. Para mim não existem situações embaraçosas. Posso aguentar por muito tempo o assédio da fome e ainda rir dela. É para isso que serve o jejum.

Hermann Hesse está explicando porque você perde a paciência. A fome representa a dor, esperar representa a paciência. Quando você está sofrendo, seja com dor física, como na fome, seja com dor psicológica, como na raiva, a probabilidade de você perder a paciência aumenta, pois você precisa ter sabedoria interior para suportar a dor do desejo insatisfeito. Sabedoria interior para suportar a dor do desejo insatisfeito é o que Hermann Hesse chama de jejum (suportar a fome).

Hermann Hesse explica que paciência é uma aprendizagem, ou seja, que requer prática, e explica o benefício: “Se eu não tivesse aprendido a suportar a fome, seria obrigado a aceitar hoje mesmo um serviço qualquer, seja na tua casa, seja em outro lugar, já que a fome me forçaria a fazê-lo”. Ou seja, paciência não é heroísmo, nem abnegação, é apenas inteligência, é apenas a melhor opção. Se Sidarta perdesse a paciência e não suportasse a dor, teria que aceitar um serviço qualquer.

A famosa oração da serenidade diz assim: “Deus, conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso e a sabedoria para discernir uma da outra”. Note que a oração explica que tem coisas que são do seu arbítrio e coisas que não são, mas o segredo do sucesso é discernir uma da outra. Ou seja, viver mal não vem do fato de que tem coisas que são do seu arbítrio e coisas que não são, mas da ignorância disso. Por isso, para ter paciência, só com lucidez.

⁠Paciência é o tanto de contrariedade, frustração e desconforto que você consegue suportar até realizar o que quer. Sou uma pessoa paciente, por isso me sinto a vontade para definir essa competência. Mas não nasci paciente. Ninguém nasce com paciência. Todo ser humano quando nasce é um bicho com reação instintiva e capacidade zero de suportar a dor. Paciência é uma competência intelectual e adulta, desenvolvida através de muita prática de autoobservação e autoanálise.

Assim como não é num click que você consegue suportar 20 quilos com os braços, também não é num click que você consegue suportar contrariedade, frustração e desconforto com a consciência.

Não é nada fácil desenvolver a paciência e digo isso por experiência própria. Não é fácil suportar a dor. É um trabalho de Hércules. Não é fácil discernir entre o que são as coisas que você pode mudar e as coisas que não pode. É um trabalho de Buda. Mas vale todo o esforço.

Com paciência você vive e convive bem. Assim como John Lenonn, você entende que nada é capaz de mudar seu mundo (tirar sua paz). Daí, ao invés de enroscar nas circunstâncias feito carrapicho, você começa a deslizar feito sabonete. Assim como minha avó, você entende que devagar é pressa e começa a caminhar tranquilamente e feliz como Bastião. Assim como Sidarta, você descobre que Shangrilá é aqui, se torna barqueiro e vai morar na terceira margem do rio.

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