Certa vez, fui visitar um amigo. Quando cheguei na casa dele, ele estava olhando fixamente para um rádio que ficava em cima da mesa. Mas não era um olhar comum, corriqueiro, habitual, era um olhar espantado.
— O que foi? — perguntei ao meu amigo.
— Esse rádio é mal-assombrado — ele respondeu.
— Como assim? — perguntei.
— Liga o rádio pra você ver! — ele me disse.
Eu liguei o rádio e começou a tocar uma música da Elis Regina.
— Está tocando Elis Regina — eu falei.
— A Elis Regina é viva? — ele me perguntou.
— Não, ela já morreu! — respondi.
— Está vendo! Esse radio é mal-assombrado, toca Elis Regina, Vinícios de Moraes e Tim Maia. Tudo gente morta. Toca até Beethoven, que já morreu faz séculos.
Comecei a dar risada. Meu amigo sabia o motivo do rádio tocar música de gente morta. Ele era músico e entendia de gravação. Mas o espanto do meu amigo era cientificamente pertinente.
— A bruxaria fica pior — ele me disse.
— Pior, como? — eu perguntei.
— Eu passo o dia inteiro escutando esse rádio e escuto pelo menos umas duzentas músicas por dia nele. Só que…
— Só que o quê?
Meu amigo pegou uma chave de fenda, desparafusou o rádio e retirou a carcaça de plástico que cobria os componentes eletrônicos.
— Olha só isso! — ele me disse.
— São os componentes eletrônicos do rádio — eu falei.
— Sim, mas cadê as músicas que ouço saindo daí de dentro? Se não estão aí dentro, como podem sair daí de dentro?
Caí na gargalhada. Meu amigo também.
Contei essa história para fazer uma analogia com o nada. Um rádio pode tocar qualquer música justamente porque não tem música nenhuma dentro dele. O nada é como um rádio, potencial para tudo. Sem o rádio não haveria música: o rádio é a fábrica de todas as músicas. Sem o nada não haveria realidade: o nada é a fábrica de todas as realidades.