Na época em que estava casado com minha primeira esposa, tive uma experiência que foi fundamental para o entendimento do processo terapêutico. Minha esposa começou a gastar demais e ficar inadimplente no cartão de crédito. Ela tentava se controlar, mas não conseguia. Então, resolveu procurar ajuda e recomendaram que ela fosse no DA (Devedores Anônimos).
Não sei se você, caro leitor, sabe, mas o famoso programa do AA (Alcoólatras Anônimos) se desdobrou em diversos programas similares para diferentes tipos de compulsão. Por exemplo, NA (Narcóticos Anônimos), CCA (Comedores Compulsivos Anônimos), e por aí vai. Todos seguem o mesmo funcionamento e literatura do AA com adaptações mínimas de terminologia. O DA (Devedores Anônimos) é um desses desdobramentos.
Comecei a ficar ciente dos desdobramentos do AA quando minha esposa disse que queria ir ao DA no sábado. Achei interessante existir um grupo de anônimos para isso e a apoiei. Até porque, o endividamento dela afetava as finanças da casa e me afetava. Só que minha esposa era tímida e estava com vergonha de ir sozinha. Então, pediu que eu fosse com ela.
O encontro do DA acontecia no centro de São Paulo, numa sala dentro da igreja da Santa Efigênia. Chegamos cedo e fomos recebidos pelo coordenador. Minha esposa contou do caso dela e perguntou se eu podia participar para apoiá-la. O coordenador me perguntou se eu também era um gastador compulsivo. Disse que não. Ele respondeu que não era permitido acompanhantes, mas abriria uma exceção, com a condição de que entrasse mudo e saísse calado. Aceitei e entramos na sala.
Aos poucos os participantes foram chegando e sentando nas cadeiras de plástico. Quando a sala estava cheia, a reunião começou. O funcionamento era simples. Cada um tinha sua vez de falar. Ninguém podia interromper. Quando terminava, não havia comentários, nem análise do conteúdo exposto, apenas um coro dizendo: “grato pelo compartilhamento”
Meu primeiro grande choque nessa experiência, foi sobre a franqueza dos participantes. Nenhum deles, absolutamente nenhum, se sentia constrangido em confessar suas mazelas. Eu me considerava uma pessoa sincera, mas aqueles participantes me deixaram envergonhados. Eles falavam mesmo, na lata, sem enrolação. Aquilo me encantou. Era Big Brother da alma.
Gostei tanto daquela experiência, que toda sexta-feira eu alertava minha esposa: “não esquece que amanhã tem reunião do DA”. Eu não estava mais indo para apoiá-la, estava indo para experimentar e descobrir o segredo daquela metodologia.
Meu segundo grande choque nessa experiência com o DA, foi um cara. Vou chamá-lo de Gilson, para facilitar. Quando chegava a vez do Gilson falar, era difícil eu cumprir meu voto de silêncio. O cara fazia os maiores absurdos financeiros, complicando a vida dele e dos seus familiares. E na semana seguinte, ao invés de corrigir o erro, piorava, enfiava ainda mais o pé na jaca.
Por exemplo, ele pegava dinheiro da aposentadoria da mãe para pagar uma dívida. Daí, gastava o dinheiro comprando uma besteira qualquer que não precisava. Depois, pegava o dinheiro para pagar a escola dos filhos e fazia a mesma coisa. Era impressionante o tanto de merda que o Gilson fazia e sua capacidade de piorar o que já estava péssimo.
Eu tinha vontade de bater a cabeça do Gilson na parede, até ele acordar ou até rachar. Credo! Como não percebe a merda que está fazendo? Será que não tem consciência? Será que é incapaz de refletir e aprender com os erros? Eu não posso falar, mas vocês que podem, por favor, digam algo para esse infeliz! Façam ele acordar! Eu pensava.
Porém, para meu grande espanto, ninguém falava nada. Nada, nada, nada. Gilson confessava todos os seus pecados sórdidos em alto e bom-tom, mas não recebia nenhuma penitência, zero crítica, apenas um compassivo: “grato pelo compartilhamento”.
Só que meu segundo grande choque nessa experiência com o DA, não foi ter acesso à doença do Gilson, mas ter acesso ao seu processo de cura. Após meses apenas confessando seus pecados, um belo dia, Gilson adquiriu consciência. Gilson chegou na reunião, e ao invés de apenas confessar seus pecados, como de costume, começou a explicar o que tinha por trás deles.
Claro que eu fiquei estupefato. De onde havia brotado aquela consciência? E como havia brotado em um terreno tão árido? Que milagre havia acontecido ali na igreja da Santa Efigênia? Foi então que me dei conta que o milagre era a orelha. Gilson era um gastador compulsivo, mas não era surdo. Então, quanto mais ele falava, mais ele se ouvia. E como ele falava sempre a mesma coisa, ele era obrigado a se ouvir falando sempre a mesma coisa. Pouco a pouco, a ficha foi caindo.
Agora, dando um pulo para frente, foi por isso que não me espantei quando Joaquim me disse para ir nas reuniões das sanghas e apenas escutar. Essa conversa aconteceu assim. No final dos encontros do EEU, Joaquim sugeria que os participantes formassem uma sangha e me colocava como coordenador. Ele fez isso em Uberlândia, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Curitiba. Então, nessa época, eu viajava todo final de semana. Mas antes de começar, fui conversar com Joaquim.
— O que faço nas reuniões das sanghas? — perguntei.
— Faz o que você quiser — Joaquim respondeu.
— Não brinca com coisa séria, Joaquim.
— Não estou brincando.
— O que eu faço com o sofrimento das pessoas?
— Ajuda a resolver, ué!
— Como?
— Primeiro, escutando.
— E o que mais?
— Mais nada! Só escuta!
— O método é escutar? Só isso?
— Ixo! Primeiro você escuta. Mas escuta mesmo, com bastante atenção. Conforme for escutando, você vai saber o que fazer depois.
A primeira reunião de sangha que coordenei foi em Uberlândia. Coloquei o grupo em roda, igual nos encontro dos anônimos e comecei a escutar. Conforme ouvia os relatos, surgiam perguntas na minha cabeça. Conforme fazia essas perguntas, as pessoas respondiam falando mais ainda. E assim o sofrimento delas iam se abrindo como uma folha de papel dobrada. Por fim, as pessoas ficavam em paz e eu, pasmo. O método da escutatória funcionava mesmo.