O retrato de Dorian Gray

17/12/2021 by in category Vídeos tagged as , with 0 and 0

Existem três tipos de autoconhecimento: existencial, psicológico e pessoal.

Autoconhecimento existencial diz respeito ao ser. Ao ser que você é. Ser é existir. Autoconhecimento existencial e quando você fica consciente da sua existência.

Autoconhecimento psicológico diz respeito a sua natureza humana. O ser que você é não é humano, é existencial, mas está brincando de ser humano. Autoconhecimento psicológico é quando você fica consciente da sua natureza humana.

Sua natureza humana é como o sistema operacional do computador, igual para todo ser humano. Mas conforme você vai vivendo, você vai lotando o HD desse computador com memórias das experiências vividas e essas memórias servem de base para produção de crenças, valores, hábitos, entre outras coisas que fazem você ser a pessoa que você é. Se todas as pessoas fossem só seres existenciais e psicológicos, ou seja, se todas as pessoas fossem só seres humanos, pessoas não seriam pessoas. Entende? Se todas as pessoas fossem só seres humanos, todas as pessoas seriam iguais.

Pense em mil computadores da mesma marca, do mesmo modelo e com o mesmo sistema operacional. Qual seria a diferença entre um computador e outro? Nenhuma. Distribua esses mil computadores para mil pessoas e deixe essas mil pessoas usando os mil computadores durante um mês, depois pegue-os de volta. Esses mil computadores continuarão exatamente iguais? Em questão de sistema operacional sim, mas em questão de memória não. Cada computador estará customizado de uma forma diferente, com aplicativos diferentes, músicas diferentes, fotos diferentes, organização de tela diferentes e etc. Ou seja, cada computador terá uma configuração interna personalizada.

Analogamente, autoconhecimento pessoal é isso. O que você chama de pessoa é a personalização da sua natureza humana produzida através das suas escolhas e respectivas experiências. O que significa que se você tivesse feito outras escolhas e consequentemente tido outras experiências você seria outra pessoa. Você não seria outro ser humano, assim como os mil computadores não seriam outros computadores, mas você seria sim outra pessoa. Pois sua pessoa, ao contrário do que você acredita, não é feita de carne e osso, é feita de memória.

Autoconhecimento pessoal é estudar a pessoa que você é. Sendo que sua pessoa é feita de memória, então, autoconhecimento pessoal é estudar sua memória. Esse é o primeiro passo para prática do autoconhecimento pessoal, entender que você, enquanto pessoa, é feito de memória. O segundo passo é entender que memória é trauma.

Toda vez que você tem uma experiência, essa experiência traumatiza seu HD mental produzindo memórias dessa experiência. A palavra trauma é usada apenas para memórias desagradáveis, mas tanto memórias desagradáveis como memórias agradáveis são traumas.

Então, sendo que sua pessoa é feita de memórias, e sendo que memórias e traumas é a mesma coisa, do que sua pessoa é feita? Simples: sua pessoa é a somatória de todos os traumas que você teve desde o nascimento até o presente momento. E sendo assim, o que é praticar autoconhecimento pessoal? Praticar autoconhecimento pessoal é estudar os próprios traumas. Esse é o segundo passo que deve ficar bastante claro.

O terceiro passo é a digestão dos traumas. Não basta revisitar os traumas para produzir autoconhecimento pessoal, é preciso digeri-los. Não basta relembrar da experiência vivida, é preciso estudá-la e entender qual é a aprendizagem contida na experiência memorizada, qual é a aprendizagem contida no trauma.

Esse é o terceiro passo que deve ficar claro: é impossível autoconhecimento pessoal sem digestão dos traumas.

Autoconhecimento pessoal é digerir traumas. E como os traumas estão no HD da memória, assim como a comida está no bucho da vaca, tem que trazer os traumas de volta ao consciente para analisar e digerir. Ou seja, é preciso ruimar os traumas para produzir autoconhecimento pessoal.

Sua pessoa (sua personalidade) é um autorretrato pintado com o pincel do trauma.

Quando estava na faculdade tive que ler um livro chamado “O Retrato de Dorian Gray”, do Oscar Wild. Me lembro que a leitura desse livro foi bastante indigesta e mexeu demais comigo. Demais, demais mesmo.

Esse livro conta a história de um rapaz muito bonito que foi pintado em um autorretrato. Só que assim que o autorretrato foi pintado, aconteceu uma espécie de mágica, e conforme esse rapaz ia se traumatizando com suas experiências de vida, os traumas iam sendo transferindo para o autorretrato. Até as cicatrizes que ele tinha nas costas foram transferidas para o autorretrato. Quanto mais experiência de vida o rapaz tinha, mais o autorretrato ia envelhecendo, porém, ele mesmo se mantinha eternamente jovem.

Quando li esse livro, meu autorretrato já estava bastante envelhecido, por isso esse livro mexeu tanto comigo.

O retrato de Dorian Grey representa nossa alma, em termos espiritualistas, e nossa mente.

Nossas almas são pesadas, mas não por causa dos traumas em si, pois viver é inevitavelmente traumatizante. E se para ter uma alma leve fosse preciso ser livre de traumas, o único jeito disso acontecer seria não vivendo.

Nossas almas são pesadas porque são feitas de traumas não digeridos. São como um saco cheio de cartas fechadas, cartas que recebemos e não lemos, apenas arquivamos. Cartas cheias de luz presa (lucidez presa), luz trancada (lucidez trancada), luz não digerida (lucidez não digerida).

Para viver bem, precisamos abrir nossas cartas.

Só que não adianta apenas pular no saco da memória e ficar nadando lá dentro. Para abrir os traumas não digeridos, não entendidos, não assimilados, é preciso muita reflexão. É preciso pensar e repensar os traumas. É preciso extrair todo o sumo da experiência.

Na história do retrato de Dorian Gray, assim que o rapaz percebe o que está acontecendo com seu autorretrato, ele leva o autorretrato para o porão, tranca o porão e nunca mais volta lá.

Essa história não tem um final feliz porque não tem nem começo, nem meio, nem final feliz para uma história não digerida. História não digerida gera congestão, bloqueia a saúde, entope as artérias e o fluxo da vida. Para viver bem é preciso voltar ao porão, retirar o retrato de Dorian Gray das sombras e trazê-lo a luz.

Ou seja, para viver bem é preciso revisitar os traumas e digeri-los com as enzimas da consciência. Para viver bem é preciso praticar autoconhecimento pessoal.

Autoconhecimento existencial e autoconhecimento psicológico são fundamentais para viver bem, mas não são suficientes para viver bem.

Autoconhecimento existencial e psicológico são o alicerce da prática da autociência, mas a função do alicerce é servir de apoio para as paredes e o telhado. O telhado do mal viver humano é o porão onde os traumas estão trancados. Por isso, para chegar ao céu do bem viver, primeiro é preciso descer até o porão e fazer uma bela de uma faxina.

Não é à toa que vários simbolismos religiosos expressam a descida aos infernos antes da subida aos céus. Na divina comédia, dante desceu aos infernos. Hércules também. Jesus passou por uma via-sacra infernal.

Inferno significa inferior. Eu-inferior é o eu que está abaixo do eu-existencial e do eu-psicológico. Eu-inferior é sua pessoa. Para viver bem como pessoa você precisa descer até sua pessoa, entender sua pessoa, digerir sua pessoa.

Não adianta você botar um salto alto, empinar o nariz, entrar no elevador da autonegação pessoal e apertar o botão da cobertura deixando seu autorretrato trancado no porão. Não funciona. Eu lhe garanto que não funciona por que eu já tentei fazer isso e não funcionou.

O caminho para sair é entrar. O caminho para subir é descer. Pensa nisso! Pensaê!

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