Ramalho acorda com o chamado da esposa. Levanta lentamente para não acordar o filho que está dormindo na mesma cama. Calça o chinelo fino e vai até a cozinha. Isolda lhe pede para descer urgente a ladeira da favela e comprar carne moída no açougue. Ela reforça a pressa dizendo: “Vá logo, homê, vá!”.
Do lado de fora da casa, um bafo quente abraça o corpo de Ramalho. Ainda é outubro, mas o clima também é vida loka. Depois de cinco quarteirões, Ramalho está derretendo. Para encurtar o caminho e andar pela sombra, decide pegar um atalho, o curral, conhecido apenas pelos traficantes e moradores antigos.
Ramalho se encaixa nos dois casos: é traficante e morador antigo. Aliás, maizoumenos. Faz dois anos que saiu da cadeia. Ficou preso cinco anos. A pena era de dez, mas foi diminuída por bom comportamento, para o espanto de todos, pois, desde a infância, Ramalho nunca foi de bom comportamento.
Isolda acredita que a prisão foi a melhor coisa que aconteceu a Ramalho. Entrou um e saiu outro. Entrou traficante e saiu padre. Se bem que era um padre estranho. Não falava em Jesus como a maioria dos padres na favela. O que ocorreu foi o seguinte.
Após ser preso, nos primeiros dias, houve uma briga na cela que Ramalho estava e ele foi esfaqueado. Sangrou mais que pescoço cortado de galinha. Mas não morreu. Passou três semanas em recuperação na enfermaria. Na última semana, após ter feito amizade com a enfermeira, perguntou a moça:
“Que livro é esse que você lê e relê? É a Bíblia?”
“Quase isso! É um livro indiano que conta a história de um guerreiro chamado Arjuna. Quer ler? Posso te emprestar”, respondeu a enfermeira.
“Eu não sei ler!”, respondeu Ramalho.
“Que pena! Você iria gostar de conhecer o Arjuna”, disse a moça, “
“Por que acha isso?”, perguntou Ramalho.
“Ele também é um prisioneiro”, disse a enfermeira.
“Ah é! Qual crime ele cometeu?”, perguntou Ramalho.
“Nascer!”, respondeu a enfermeira.
Ramalho foi pego de surpresa. Ficou pensando se tinha entendido mal a resposta ou se tinha algo na resposta que ele não tinha entendido.
“Desde quando nascer é crime?”, perguntou Ramalho.
A enfermeira deu uma risada, olhou com ternura para Ramalho e respondeu: “A prisão em que Arjuna está encarcerado não é uma prisão de concreto, igual essa aqui, é uma prisão mental”.
Ramalho deu uma gargalhada e comentou: “Fala sério! Se eu estivesse encarcerado em uma prisão mental já tinha fugido faz tempo!”.
“Estou falando seríssimo! Você não faz ideia quão sério! São invisíveis as grades que nos cercam. Esse livro conta como o sábio Krishna ajudou Arjuna a se libertar da sua prisão mental”, disse a enfermeira.
“E como foi?” perguntou Ramalho.
“Você precisa ler o livro para descobrir”, disse a enfermeira.
“Eu já te disse que não sei ler”, reforça Ramalho.
“Então, aprenda!”, disse a enfermeira.
“Como?” perguntou Ramalho.
“Você é quadrado?”, perguntou a enfermeira.
“Não!”, respondeu Ramalho.
“Então, se vira!”, disse a enfermeira e foi embora.
No último dia de recuperação de Ramalho, a enfermeira entrou no quarto com um aparelho de som portátil e colocou uma música para Ramalho ouvir.
Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada
Nem fico sorrindo ao seu lado
Você pensa em mim toda hora
Me come, me cospe, me deixa
Talvez você não entenda
Mas hoje eu vou lhe mostrar
Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o medo de amar
Eu sou o medo do fraco
A força da imaginação
O blefe do jogador
Eu sou, eu fui, eu vou
Eu sou o seu sacrifício
A placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição
Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada
Por que você me pergunta?
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra
Do fogo, da água e do ar
Você me tem todo o dia
Mas não sabe se é bom ou ruim
Mas saiba que eu estou em você
Mas você não está em mim
Das telhas eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra “A” tem meu nome
Dos sonhos eu sou o amor
Eu sou a dona de casa
Nos “peg-pagues” do mundo
Eu sou a mão do carrasco
Sou raso, largo, profundo
Eu sou a mosca da sopa
E o dente do tubarão
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão
É, mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio
O início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio
Ramalho havia acabado de acordar. Seu pensamento estava aberto como a janela da enfermaria. Conforme a música foi entrando em sua cabeça, junto com a brisa da manhã, ele foi saindo de si, sem perceber. Quando a música terminou, ele havia sido teletransportado para um lugar muito além da prisão em que seu corpo se encontrava.
“Que foi isso?”, perguntou o Ramalho.
“Isso foi o livro em forma de música”, respondeu a enfermeira.
Ramalho pediu para ouvir a música novamente. E depois, novamente. E depois, novamente. Por fim, concluiu: “Tá falando de Deus”.
“Muito bem, Ramalho!”, exclamou a enfermeira, “Assim como você, a mente de Arjuna estava encarcerada em uma prisão de segurança máxima chamada: materialismo. Ele queria conhecer Deus, procurava em todo canto, mas nunca encontrava.
“Não encontrava em lugar nenhum porque Deus é tudo!”, exclamou Ramalho.
“Absolutamente tudo!”, completou a enfermeira, “Melhor seria se chamássemos Deus de Tudo ao invés de Deus, não é mesmo? Seria o fim dos problemas religiosos”.
“Ao invés de rezarmos para Deus, rezaríamos para Tudo”, disse Ramalho.
“E se tudo é por nós, quem seria contra?”, completou a enfermeira.
A enfermeira estava arremessando Ramalho para dentro de um Deus imanente, que não precisava de igreja, nem de padre, nem de bíblia, nem de missa. Um Deus presente nas coisas mundanas, como uma mosca na sopa.
Era a primeira vez que Ramalho pensava em Deus dessa maneira. Ele estava quase entendendo. Sua falta de conhecimento religioso lhe ajudava. Ele nunca se interessou por religião. Sendo malandro, entendia a malandragem das igrejas. Por isso preferia vender drogas ao invés de vender mentiras.
Mas para entender mesmo, Ramalho teria que sair da prisão do materialismo. E não se pode sair do materialismo através do pensamento objetivo, pois o que são paredes, grades e fechaduras senão objetos?
“Tenho boas notícias”, disse a enfermeira.
“Opa! Diga!”, exclamou Ramalho.
“O médico disse que você está recuperado e pode voltar para a cela”, disse a enfermeira.
“O que tem de bom nessa notícia?”, perguntou Ramalho.
A enfermeira riu e depois disse: “Você precisa se trocar. Suas roupas estão penduradas no banheiro e seu remédio está em cima da mesa. Vista-se! Um carcereiro está vindo te buscar para levá-lo de volta à cela”.
Ramalho entrou no banheiro e saiu vestido com a tradicional roupa de presidiário: calça cáqui e camiseta branca. Ao sair, viu que a enfermeira não estava mais lá. A sala ficou vazia por alguns minutos e logo entrou um carcereiro.
“Está pronto?”, perguntou o carcereiro.
“Pronto pra quê? Para voltar pra um cubículo cheio de homens fedidos?”, perguntou Ramalho.
“É isso aí!”, respondeu o carcereiro sério, e depois completou: “A enfermeira pediu para lembrá-lo de pegar seu remédio em cima da mesa”.
Ramalho foi até a mesa. Não tinha remédio nenhum ali, só tinha o livro da enfermeira.
“Pegou o remédio?”, perguntou o carcereiro.
Ramalho mostrou o livro.
“Isso não é remédio, é um livro!” exclamou o carcereiro.
Ramalho balançou a cabeça verticalmente em sinal afirmativo e saiu caminhando atrás do carcereiro até chegar em sua cela.
“Eu quero ler esse livro”, disse Ramalho.
“Encontre uma mesa livre, sente-se e leia à vontade. A biblioteca fica aberta até às 17:00”, respondeu o bibliotecário do presídio.
A pequena biblioteca ficava em um canto esquecido do pátio. As estantes, feitas de madeira desgastada, abrigavam romances surrados, manuais técnicos com páginas amareladas, bíblias com capas de couro, e até mesmo alguns gibis da Turma da Mônica. Um globo terrestre empoeirado repousava sobre um pedestal improvisado, como um lembrete silencioso de um mundo que existia além daqueles muros.
Seus frequentadores eram poucos, mas eram assíduos. Eles usavam a biblioteca como uma porta. Com a ajuda dos livros eles podiam, pelo menos momentaneamente, sair da realidade opressiva da prisão, viajar para terras distantes, aprender coisas novas, ou simplesmente se perder em devaneios.
“Eu não sei ler”, disse Ramalho.
“Ah tá, agora eu entendi”, disse o bibliotecário, “Você quer aprender a ler, é isso?”
“Eu quero saber o que tem aqui dentro!”, respondeu Ramalho apontando para o livro, “Só que abrir um livro não é igual a abrir um cofre. É muito mais difícil. Eu já abri esse livro centenas de vezes, mas não consigo pegar nada que está guardado dentro dele”.
O bibliotecário ficou admirado com a explicação de Ramalho sobre a natureza dos livros. Em seguida pediu para que Ramalho lhe emprestasse o livro que ele desejava ler. Ramalho entregou o livro para ele.
“Bhagavad Gita”, disse o bibliotecário lendo a capa do livro.
“Você já leu esse livro?”, perguntou Ramalho.
“Não, nunca ouvi falar. E essa palavra “Bhagavad Gita”, não é em português, é em outro idioma”, disse o bibliotecário.
“Não é um livro brasileiro?”, perguntou Ramalho.
“Acho que não!”, respondeu o bibliotecário, “Mas está escrito em português.
“Tá certo! E como faço para aprender a ler?”, perguntou Ramalho.
“Basta você se inscrever no curso de alfabetização prisional”, disse o bibliotecário.
“Onde faço isso?”, perguntou Ramalho.
“Aqui mesmo!”, disse o bibliotecário, “Vou pegar uma ficha de inscrição pra você”.
Quatro anos depois, Ramalho já estava lendo e escrevendo com desenvoltura. Esse foi um dos motivos da redução da sua pena. Ramalho participou do programa de “remição pela leitura”, uma lei brasileira que permite que o presidiário reduza sua pena lendo livros e escrevendo resenhas sobre eles.
Ramalho leu o Bhagavad Gita dezenas de vezes. Se tornou seu livro de cabeceira. Ele consultava o livro constantemente e era capaz de citar trechos de cor, igual os crentes citavam os trechos da Bíblia. Krishna e Arjuna se tornaram amigos imaginários. Porém, por mais que Ramalho lesse e relesse o livro, sentia que ainda estava separado de Deus.
Certo dia, o mesmo carcereiro que havia lhe conduzido da enfermaria até a cela, lhe chamou dizendo: “Ramalho, pegue seu remédio e venha comigo!”.
Ramalho entendeu imediatamente que o carcereiro estava se referindo ao livro.
“Para onde você está me levando?”, perguntou Ramalho enquanto era conduzido pelos corredores do presídio.
O carcereiro não respondeu. Continuou caminhando. Aos poucos o ambiente foi ficando familiar. Quando o carcereiro parou, Ramalho percebeu que estava em frente a porta da enfermaria. Ele ouviu a música do Raul Seixas tocando do outro lado: gitá, gitá, gitá.
“Entre na sala!”, disse o carcereiro.
Ramalho abriu a porta e viu a enfermeira. Ela parecia a mesma. Apenas o cabelo estava diferente. Ela abaixou a música e disse: “Prazer revê-lo! Fiquei sabendo que você se virou e aprendeu a ler”.
“Fiz o curso de alfabetização”, respondeu Ramalho.
“Meus parabéns!”, disse a enfermeira.
“Eu tenho muitas perguntas para você!”, exclamou Ramalho.
“Claro que tem!”, disse a enfermeira, “Mas primeiro me diga: o remédio lhe curou?”.
“Sou um novo homem, se é isso que quer saber. Aliás, homem é o que eu era antes de conhecer Krishna e Arjuna…”.
“O que você é agora?”, perguntou a enfermeira.
“Espírito encarnado, filho de Deus, fração de vida, sonho de Brahman… Sei lá…”, disse Ramalho.
“E como você se sente?”, perguntou a enfermeira.
“Ainda me sinto separado de Deus”, respondeu Ramalho.
“Você se sente assim porque ainda falta a segunda dose do remédio”, disse a enfermeira.
“Outro livro?”, perguntou o Ramalho.
“Não! Ler livros é fácil. Basta ter alfabetização. A segunda dose é a parte mais difícil”, disse enfermeira.
“O que é?”, perguntou Ramalho.
“Vou te mostrar”, disse a enfermeira, “mas primeiro você precisa me prometer que vai fazer exatamente o que te pedir para fazer mesmo que a princípio não entenda o que está fazendo”.
“Você não vai me pedir para cometer nenhum crime, certo?” perguntou Ramalho.
“Não, nada disso. Mas você vai achar estranho. Por isso preciso combinar com você primeiro”, disse a enfermeira.
“Tá certo! Combinado! O que é?”, disse Ramalho.
“Por favor, pega o vidro de álcool que está dentro desse armário”, disse a enfermeira.
Ramalho abriu o armário e pegou o vidro de álcool.
“Pega aquela bacia de alumínio, coloque o livro dentro e jogue o álcool em cima do livro”, disse a enfermeira.
Ramalho fez o que a enfermeira pediu, embora realmente estivesse achando estranho.
“O que é isso? Macumba? Descarrego?”, perguntou o Ramalho.
“Quase isso!”, disse a enfermeira, “Agora pegue essa caixa de fósforos, risque um fósforo e jogue na bacia”.
“Vai queimar o livro!”, exclamou Ramalho.
“Exatamente!”, respondeu a enfermeira.
Ramalho hesitou. Mas ele havia combinado de fazer o que a enfermeira lhe pedisse mesmo sem entender, então, ele riscou um fósforo e jogou dentro da bacia de alumínio. O livro começou a pegar fogo. Enquanto o livro queimava a enfermeira disse:
“Um homem estava fazendo uma viagem. No meio do caminho tinha um rio. O homem construiu uma jangada para atravessar o rio. Após atravessar o rio, faz sentido o homem levar a jangada nas costas?”
“Não sei se entendi”, disse Ramalho.
“Você já entendeu o que é Deus, mas ainda se sente separado porque Deus não é uma explicação, não é uma ideia. Assim como não faz sentido o homem levar a jangada nas costas, não faz sentido você buscar a união com Deus decorando uma explicação. Por isso você está queimando o livro. Ele serviu como jangada, mas se você continuar carregando esse livro nas costas, ao invés de lhe ajudar, irá lhe atrapalhar. A partir de agora você deve praticar uma leitura muito mais difícil do que ler livros”, disse a enfermeira.
“Qual?” perguntou Ramalho.
“Ler a si mesmo”, disse a enfermeira, “De fato, você só sabe da sua própria experiência, sempre e inevitavelmente. Então, se você não for capaz de encontrar Deus em si, jamais irá encontrá-lo”.
Após queimar o livro, Ramalho se dedicou inteiramente a encontrar Deus dentro de si. Passou cinco anos escrevendo em um caderno universitário que ganhou do bibliotecário. Enfileirou seus pensamentos e sentimentos e, através da escrita, questionou um por um, feito um investigador de polícia buscando descobrir a verdade.
Não foi um processo agradável, mas foi libertador. Ramalho teve que admitir ideias erradas que ele considerava certas. E pior! Teve que trazer à tona dores dilacerantes que havia enterrado no fundo da alma. Mas sobreviveu. Por fim, entendeu como essas ideias e dores influenciaram suas escolhas e como suas escolhas o levaram até a prisão.
Nas últimas páginas do caderno, Ramalho perdoou a si e a vida. Ele entendeu a alquimia da merda. Entendeu que o propósito da ignorância é induzir a fazer merda. Entendeu que o propósito da merda, é causar dor. E que a dor é o fogo que transforma a merda em sabedoria, que faz a merda servir de adubo para melhores escolhas.
Ramalho registrou essa descoberta escrevendo o seguinte poema:
Por mais que eu pense
Que é um estorvo
Sei que essa parede
Me ensina a esperar
Por mais que me sinta
Buscando pelo em ovo
Sei que essa sede
Me ensina a encontrar
Por mais que pareça
Soco em ponta de faca
Sei que essa ferida
Ensina a me curar
Por mais que enfie
O pé na mesma jaca
Sei que tudo na vida
Vem pra me ensinar
A vida é uma escola
A felicidade é dez no boletim
De quem aprendeu a ver o lado bom
Da coisa ruim
Ramalho conseguiu a libertação mais difícil. Ao revisar seus pensamentos e sentimentos usando a lente de aumento da análise, percebeu que sua vida foi o inevitável resultado de suas escolhas e se libertou do vitimismo. Enquanto todos apontavam dedos e se diziam inocentes, Ramalho batia no peito e se declarava culpado.
Mesmo aprisionado entre quatro paredes, Ramalho se tornou um homem livre. Porém, contudo, todavia e entretanto, ainda se sentia separado de Deus. Então, no dia de sua soltura, o mesmo carcereiro do remédio apareceu na grade da cela.
“Bora, Ramalho! Chegou a hora de voltar pra casa!”, disse o carcereiro.
Ramalho abraçou demoradamente todos os companheiros de prisão, distribuiu os cigarros que tinha, pegou o caderno universitário e saiu da cela.
“Você está me levando pra enfermaria!”, disse Ramalho reconhecendo os corredores.
“Exatamente!”, disse o carcereiro, “A enfermeira quer conferir se você está curado”.
Ramalho abriu a porta e entrou. A enfermeira olhou para ele com firmeza, igual mãe olhando nos olhos de um filho, depois disse: “Sente-se aqui e levante a manga da camisa que vou medir sua pressão”.
“Você salvou minha vida duas vezes”, disse Ramalho, “Primeiro você me salvou de morrer esfaqueado e depois me salvou de morrer me esfaqueando por ignorância. Como posso lhe retribuir por isso?”.
“Você já retribuiu!”, disse a enfermeira, “O desejo de todo médico é que seu paciente se cure. A julgar por sua pressão arterial de 14 por 9 e esse semblante sereno, creio que a segunda dose do remédio fez efeito e você está completamente curado”.
Ramalho lhe mostrou o caderno universitário e disse: “Passei minha alma a limpo aqui. Fiz o que você me disse, parei de ler livros e li a mim mesmo. Li todo meu drama. Li e reli. Entendi tudo. Entendi mais que tudo. Entendi até o que sequer imaginava entender. Você estava certa. São invisíveis as grades que nos cercam. Essa cadeia não é nada perto da nossa prisão mental”.
A enfermeira retirou o aparelho de pressão do braço de Ramalho.
Ramalho completou seu raciocínio: “Eu saí da minha prisão mental e hoje estou saindo dessa prisão física, mas ainda me sinto separado de Deus”.
A enfermeira deu uma risada suave e disse: “Essa é a parte mais fácil! Venha comigo que vamos resolver isso agora”.
A enfermeira abriu a porta, chamou o carcereiro e os três foram caminhando pelos corredores rumo à saída do presídio. Assim que o portão de ferro se abriu, Ramalho sentiu os joelhos tremerem. Era fácil ser um peixe grande em um aquário pequeno. Voltar para favela era voltar para um aquário muito maior que a cadeia de onde estava saindo.
“Está pronto?”, perguntou a enfermeira, “O que vou te mostrar é simples e fácil de perceber, mas preciso de toda sua atenção aqui. Atenção plena!”.
Ramalho respirou fundo umas três vezes, concentrou sua atenção e respondeu: “Vamos lá!”.
“Está vendo esses carros se movimentando pela rua?”, disse a enfermeira.
“Sim, estou”, respondeu Ramalho.
“Percebe a sincronia?”, perguntou a enfermeira.
“Como assim?”, perguntou Ramalho.
“Todos os carros estão se movimentando ao mesmo tempo”, disse a enfermeira.
“Sim, estão”, disse Ramalho.
“E as nuvens também. Percebe?”, perguntou a enfermeira.
“Como assim?”, perguntou Ramalho.
“O movimento das nuvens está acontecendo ao mesmo tempo que o movimento dos carros”, disse a enfermeira.
“Sim, percebo”, disse Ramalho.
“As pessoas andando na rua também estão em sincronia. Percebe?”, disse a enfermeira, “O movimento das pessoas está em sincronia com o movimento das nuvens e o movimento dos carros. Sensacional isso, não acha?”.
“Sim”, respondeu Ramalho, “mas onde você está querendo chegar com isso?”.
“Aqui, nessa conversa, em frente ao portão do presídio, que também está em sincronia com o movimento das pessoas, das nuvens e dos carros. Todos os movimentos estão acontecendo em sincronia, percebe?”.
“Sim, isso é óbvio”, disse Ramalho.
“E por quê?”, perguntou a enfermeira, “Por que todos os movimentos estão acontecendo em sincronia?”.
Ramalho ficou olhando os movimentos acontecendo em sincronia feito instrumentos em uma orquestra. Só que não tinha partitura, nem maestro. Não havia nada regendo a sincronia. A sincronia dos movimentos era inegável, mas o motivo, se houvesse, era nenhum.
“Não sei!”, respondeu Ramalho.
“Continue olhando e verá a resposta tão claramente como a luz do dia”, disse a enfermeira.
Enquanto Ramalho olhava para os diversos movimentos em sincronia, a enfermeira lhe disse: “Todos os movimentos estão acontecendo em sincronia porque é um movimento só”.
“Como assim?”, perguntou Ramalho espantado, quase entendendo.
“Não são vários movimentos em sincronia. Não tem sincronia nenhuma. É um movimento só, monobloco, que você entende como sendo múltiplos devido uma suposição”, disse a enfermeira.
“Qual suposição?”, perguntou Ramalho.
“O espaço”, disse a enfermeira.
Ramalho viu Arjuna, Krishna e Raul Seixas dançando Gita na frente do presídio. Certamente que perguntas nunca iriam lhe mostrar. Nunca! Nunca! Nunca mesmo! Deus não estava dentro dele, nem fora. Deus não estava em lugar nenhum. Deus era o lugar onde tudo estava e acontecia. Deus era o espaço. Por isso Deus era o início, o fim e o meio, o tudo e o nada.
“Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”, perguntou a enfermeira.
Ramalho nem ouviu. Ele continuava em êxtase, observando o tudo e o nada. A enfermeira respondeu mesmo assim, como se o universo inteiro estivesse aguardando aquela resposta: “Quem nasceu primeiro, não nasceu, existe”.
Quando não tiver mais nada
Nem chão, nem escada
Escudo ou espada
O seu coração acordará
Quando estiver com tudo
Lã, cetim, veludo
Espada e escudo
Sua consciência
Adormecerá
E acordará no mesmo lugar
Do ar até o arterial
No mesmo lar, no mesmo quintal
Da alma ao corpo material
Hare Krishna, Hare Krishna
Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare
Quando não se tem mais nada
Não se perde nada
Tudo ou espada
Pode ser o que se for
Livre do temor
Hare Krishna, Hare Krishna
Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare
Quando se acabou com tudo
Espada e escudo
Forma e conteúdo
Já então agora dá
Para dar amor
Amor dará e receberá
Do ar, pulmão
Da lágrima, sal
Amor dará e receberá
Da luz, visão
Do tempo espiral
Amor dará e receberá
Do braço, mão
Da boca, vogal
Amor dará e receberá
Da morte o seu dia natal
Hare Krishna, Hare Krishna
Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare
O curral é um caminho íngreme e cheio de escadas que Ramalho conhece como a palma de sua mão calejada. Mas ainda assim, ele desce lentamente. Isolda que tenha paciência. Na volta, que é subida, ele pega um moto-táxi.
De repente, um estalo seco quebra o ar.
Ramalho vai ao chão. Ainda caído e desorientado, olha para trás para ver o que aconteceu. Um dos degraus da escada que estava descendo, carcomido pelo tempo e pela chuva, se partiu.
Ramalho se levanta, vai até a escada e a beija.
FIM
Todo dia
Todo dia eu subo um degrau
Nessa escadaria
Sem começo
Sem final
Todo dia
Todo dia avanço um passo
Nessa estrada
Rabiscada
No espaço
Todo dia
Todo dia pego um trem
Nessa estação
Tempo vai
E tempo vem
Esse trem é mágico
Essa reta é torta
Para onde eu me levo
Isso já não importa
De onde quer que saia
Pra onde quer que volte
Do começo ao fim
Sou eu dentro de mim