O homem que beijou a escada | 08

20/09/2024 by in category Capitulos, O homem que beijou a escada tagged as , , with 0 and 0

Ramalho conseguiu a libertação mais difícil. Ao revisar seus pensamentos e sentimentos usando a lente de aumento da análise, percebeu que sua vida foi o inevitável resultado de suas escolhas e se libertou do vitimismo. Enquanto todos apontavam dedos e se diziam inocentes, Ramalho batia no peito e se declarava culpado.

Mesmo aprisionado entre quatro paredes, Ramalho se tornou um homem livre. Porém, contudo, todavia e entretanto, ainda se sentia separado de Deus. Então, no dia de sua soltura, o mesmo carcereiro do remédio apareceu na grade da cela.

“Bora, Ramalho! Chegou a hora de voltar pra casa!”, disse o carcereiro.

Ramalho abraçou demoradamente todos os companheiros de prisão, distribuiu os cigarros que tinha, pegou o caderno universitário e saiu da cela.

“Você está me levando pra enfermaria!”, disse Ramalho reconhecendo os corredores.

“Exatamente!”, disse o carcereiro, “A enfermeira quer conferir se você está curado”.

Ramalho abriu a porta e entrou. A enfermeira olhou para ele com firmeza, igual mãe olhando nos olhos de um filho, depois disse: “Sente-se aqui e levante a manga da camisa que vou medir sua pressão”.

“Você salvou minha vida duas vezes”, disse Ramalho, “Primeiro você me salvou de morrer esfaqueado e depois me salvou de morrer me esfaqueando por ignorância. Como posso lhe retribuir por isso?”.

“Você já retribuiu!”, disse a enfermeira, “O desejo de todo médico é que seu paciente se cure. A julgar por sua pressão arterial de 14 por 9 e esse semblante sereno, creio que a segunda dose do remédio fez efeito e você está completamente curado”.

Ramalho lhe mostrou o caderno universitário e disse: “Passei minha alma a limpo aqui. Fiz o que você me disse, parei de ler livros e li a mim mesmo. Li todo meu drama. Li e reli. Entendi tudo. Entendi mais que tudo. Entendi até o que sequer imaginava entender. Você estava certa. São invisíveis as grades que nos cercam. Essa cadeia não é nada perto da nossa prisão mental”.

A enfermeira retirou o aparelho de pressão do braço de Ramalho.

Ramalho completou seu raciocínio: “Eu saí da minha prisão mental e hoje estou saindo dessa prisão física, mas ainda me sinto separado de Deus”.

A enfermeira deu uma risada suave e disse: “Essa é a parte mais fácil! Venha comigo que vamos resolver isso agora”.

A enfermeira abriu a porta, chamou o carcereiro e os três foram caminhando pelos corredores rumo à saída do presídio. Assim que o portão de ferro se abriu, Ramalho sentiu os joelhos tremerem. Era fácil ser um peixe grande em um aquário pequeno. Voltar para favela era voltar para um aquário muito maior que a cadeia de onde estava saindo.

“Está pronto?”, perguntou a enfermeira, “O que vou te mostrar é simples e fácil de perceber, mas preciso de toda sua atenção aqui. Atenção plena!”.

Ramalho respirou fundo umas três vezes, concentrou sua atenção e respondeu: “Vamos lá!”.

“Está vendo esses carros se movimentando pela rua?”, disse a enfermeira.

“Sim, estou”, respondeu Ramalho.

“Percebe a sincronia?”, perguntou a enfermeira.

“Como assim?”, perguntou Ramalho.

“Todos os carros estão se movimentando ao mesmo tempo”, disse a enfermeira.

“Sim, estão”, disse Ramalho.

“E as nuvens também. Percebe?”, perguntou a enfermeira.

“Como assim?”, perguntou Ramalho.

“O movimento das nuvens está acontecendo ao mesmo tempo que o movimento dos carros”, disse a enfermeira.

“Sim, percebo”, disse Ramalho.

“As pessoas andando na rua também estão em sincronia. Percebe?”, disse a enfermeira, “O movimento das pessoas está em sincronia com o movimento das nuvens e o movimento dos carros. Sensacional isso, não acha?”.

“Sim”, respondeu Ramalho, “mas onde você está querendo chegar com isso?”.

“Aqui, nessa conversa, em frente ao portão do presídio, que também está em sincronia com o movimento das pessoas, das nuvens e dos carros. Todos os movimentos estão acontecendo em sincronia, percebe?”.

“Sim, isso é óbvio”, disse Ramalho.

“E por quê?”, perguntou a enfermeira, “Por que todos os movimentos estão acontecendo em sincronia?”.

Ramalho ficou olhando os movimentos acontecendo em sincronia feito instrumentos em uma orquestra. Só que não tinha partitura, nem maestro. Não havia nada regendo a sincronia. A sincronia dos movimentos era inegável, mas o motivo, se houvesse, era nenhum.

“Não sei!”, respondeu Ramalho.

“Continue olhando e verá a resposta tão claramente como a luz do dia”, disse a enfermeira.

Enquanto Ramalho olhava para os diversos movimentos em sincronia, a enfermeira lhe disse: “Todos os movimentos estão acontecendo em sincronia porque é um movimento só”.

“Como assim?”, perguntou Ramalho espantado, quase entendendo.

“Não são vários movimentos em sincronia. Não tem sincronia nenhuma. É um movimento só, monobloco, que você entende como sendo múltiplos devido uma suposição”, disse a enfermeira.

“Qual suposição?”, perguntou Ramalho.

“O espaço”, disse a enfermeira.

Ramalho viu Arjuna, Krishna e Raul Seixas dançando Gita na frente do presídio. Certamente que perguntas nunca iriam lhe mostrar. Nunca! Nunca! Nunca mesmo! Deus não estava dentro dele, nem fora. Deus não estava em lugar nenhum. Deus era o lugar onde tudo estava e acontecia. Deus era o espaço. Por isso Deus era o início, o fim e o meio, o tudo e o nada.

“Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”, perguntou a enfermeira.

Ramalho nem ouviu. Ele continuava em êxtase, observando o tudo e o nada. A enfermeira respondeu mesmo assim, como se o universo inteiro estivesse aguardando aquela resposta: “Quem nasceu primeiro, não nasceu, existe”.

Quando não tiver mais nada
Nem chão, nem escada
Escudo ou espada
O seu coração acordará

Quando estiver com tudo
Lã, cetim, veludo
Espada e escudo
Sua consciência
Adormecerá

E acordará no mesmo lugar
Do ar até o arterial
No mesmo lar, no mesmo quintal
Da alma ao corpo material

Hare Krishna, Hare Krishna
Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare

Quando não se tem mais nada
Não se perde nada
Tudo ou espada
Pode ser o que se for
Livre do temor

Hare Krishna, Hare Krishna
Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare

Quando se acabou com tudo
Espada e escudo
Forma e conteúdo
Já então agora dá
Para dar amor

Amor dará e receberá
Do ar, pulmão
Da lágrima, sal
Amor dará e receberá
Da luz, visão
Do tempo espiral

Amor dará e receberá
Do braço, mão
Da boca, vogal
Amor dará e receberá
Da morte o seu dia natal

Hare Krishna, Hare Krishna
Krishna Krishna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare

© 2023 • 1FICINA • Marcelo Ferrari