Quatro anos depois, Ramalho já estava lendo e escrevendo com desenvoltura. Esse foi um dos motivos da redução da sua pena. Ramalho participou do programa de “remição pela leitura”, uma lei brasileira que permite que o presidiário reduza sua pena lendo livros e escrevendo resenhas sobre eles.
Ramalho leu o Bhagavad Gita dezenas de vezes. Se tornou seu livro de cabeceira. Ele consultava o livro constantemente e era capaz de citar trechos de cor, igual os crentes citavam os trechos da Bíblia. Krishna e Arjuna se tornaram amigos imaginários. Porém, por mais que Ramalho lesse e relesse o livro, sentia que ainda estava separado de Deus.
Certo dia, o mesmo carcereiro que havia lhe conduzido da enfermaria até a cela, lhe chamou dizendo: “Ramalho, pegue seu remédio e venha comigo!”.
Ramalho entendeu imediatamente que o carcereiro estava se referindo ao livro.
“Para onde você está me levando?”, perguntou Ramalho enquanto era conduzido pelos corredores do presídio.
O carcereiro não respondeu. Continuou caminhando. Aos poucos o ambiente foi ficando familiar. Quando o carcereiro parou, Ramalho percebeu que estava em frente a porta da enfermaria. Ele ouviu a música do Raul Seixas tocando do outro lado: gitá, gitá, gitá.
“Entre na sala!”, disse o carcereiro.
Ramalho abriu a porta e viu a enfermeira. Ela parecia a mesma. Apenas o cabelo estava diferente. Ela abaixou a música e disse: “Prazer revê-lo! Fiquei sabendo que você se virou e aprendeu a ler”.
“Fiz o curso de alfabetização”, respondeu Ramalho.
“Meus parabéns!”, disse a enfermeira.
“Eu tenho muitas perguntas para você!”, exclamou Ramalho.
“Claro que tem!”, disse a enfermeira, “Mas primeiro me diga: o remédio lhe curou?”.
“Sou um novo homem, se é isso que quer saber. Aliás, homem é o que eu era antes de conhecer Krishna e Arjuna…”.
“O que você é agora?”, perguntou a enfermeira.
“Espírito encarnado, filho de Deus, fração de vida, sonho de Brahman… Sei lá…”, disse Ramalho.
“E como você se sente?”, perguntou a enfermeira.
“Ainda me sinto separado de Deus”, respondeu Ramalho.
“Você se sente assim porque ainda falta a segunda dose do remédio”, disse a enfermeira.
“Outro livro?”, perguntou o Ramalho.
“Não! Ler livros é fácil. Basta ter alfabetização. A segunda dose é a parte mais difícil”, disse enfermeira.
“O que é?”, perguntou Ramalho.
“Vou te mostrar”, disse a enfermeira, “mas primeiro você precisa me prometer que vai fazer exatamente o que te pedir para fazer mesmo que a princípio não entenda o que está fazendo”.
“Você não vai me pedir para cometer nenhum crime, certo?” perguntou Ramalho.
“Não, nada disso. Mas você vai achar estranho. Por isso preciso combinar com você primeiro”, disse a enfermeira.
“Tá certo! Combinado! O que é?”, disse Ramalho.
“Por favor, pega o vidro de álcool que está dentro desse armário”, disse a enfermeira.
Ramalho abriu o armário e pegou o vidro de álcool.
“Pega aquela bacia de alumínio, coloque o livro dentro e jogue o álcool em cima do livro”, disse a enfermeira.
Ramalho fez o que a enfermeira pediu, embora realmente estivesse achando estranho.
“O que é isso? Macumba? Descarrego?”, perguntou o Ramalho.
“Quase isso!”, disse a enfermeira, “Agora pegue essa caixa de fósforos, risque um fósforo e jogue na bacia”.
“Vai queimar o livro!”, exclamou Ramalho.
“Exatamente!”, respondeu a enfermeira.
Ramalho hesitou. Mas ele havia combinado de fazer o que a enfermeira lhe pedisse mesmo sem entender, então, ele riscou um fósforo e jogou dentro da bacia de alumínio. O livro começou a pegar fogo. Enquanto o livro queimava a enfermeira disse:
“Um homem estava fazendo uma viagem. No meio do caminho tinha um rio. O homem construiu uma jangada para atravessar o rio. Após atravessar o rio, faz sentido o homem levar a jangada nas costas?”
“Não sei se entendi”, disse Ramalho.
“Você já entendeu o que é Deus, mas ainda se sente separado porque Deus não é uma explicação, não é uma ideia. Assim como não faz sentido o homem levar a jangada nas costas, não faz sentido você buscar a união com Deus decorando uma explicação. Por isso você está queimando o livro. Ele serviu como jangada, mas se você continuar carregando esse livro nas costas, ao invés de lhe ajudar, irá lhe atrapalhar. A partir de agora você deve praticar uma leitura muito mais difícil do que ler livros”, disse a enfermeira.
“Qual?” perguntou Ramalho.
“Ler a si mesmo”, disse a enfermeira, “De fato, você só sabe da sua própria experiência, sempre e inevitavelmente. Então, se você não for capaz de encontrar Deus em si, jamais irá encontrá-lo”.