No último dia de recuperação de Ramalho, a enfermeira entrou no quarto com um aparelho de som portátil e colocou uma música para Ramalho ouvir.
Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada
Nem fico sorrindo ao seu lado
Você pensa em mim toda hora
Me come, me cospe, me deixa
Talvez você não entenda
Mas hoje eu vou lhe mostrar
Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o medo de amar
Eu sou o medo do fraco
A força da imaginação
O blefe do jogador
Eu sou, eu fui, eu vou
Eu sou o seu sacrifício
A placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição
Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada
Por que você me pergunta?
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra
Do fogo, da água e do ar
Você me tem todo o dia
Mas não sabe se é bom ou ruim
Mas saiba que eu estou em você
Mas você não está em mim
Das telhas eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra “A” tem meu nome
Dos sonhos eu sou o amor
Eu sou a dona de casa
Nos “peg-pagues” do mundo
Eu sou a mão do carrasco
Sou raso, largo, profundo
Eu sou a mosca da sopa
E o dente do tubarão
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão
É, mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio
O início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio
Eu sou o início, o fim e o meio
Ramalho havia acabado de acordar. Seu pensamento estava aberto como a janela da enfermaria. Conforme a música foi entrando em sua cabeça, junto com a brisa da manhã, ele foi saindo de si, sem perceber. Quando a música terminou, ele havia sido teletransportado para um lugar muito além da prisão em que seu corpo se encontrava.
“Que foi isso?”, perguntou o Ramalho.
“Isso foi o livro em forma de música”, respondeu a enfermeira.
Ramalho pediu para ouvir a música novamente. E depois, novamente. E depois, novamente. Por fim, concluiu: “Tá falando de Deus”.
“Muito bem, Ramalho!”, exclamou a enfermeira, “Assim como você, a mente de Arjuna estava encarcerada em uma prisão de segurança máxima chamada: materialismo. Ele queria conhecer Deus, procurava em todo canto, mas nunca encontrava.
“Não encontrava em lugar nenhum porque Deus é tudo!”, exclamou Ramalho.
“Absolutamente tudo!”, completou a enfermeira, “Melhor seria se chamássemos Deus de Tudo ao invés de Deus, não é mesmo? Seria o fim dos problemas religiosos”.
“Ao invés de rezarmos para Deus, rezaríamos para Tudo”, disse Ramalho.
“E se tudo é por nós, quem seria contra?”, completou a enfermeira.
A enfermeira estava arremessando Ramalho para dentro de um Deus imanente, que não precisava de igreja, nem de padre, nem de bíblia, nem de missa. Um Deus presente nas coisas mundanas, como uma mosca na sopa.
Era a primeira vez que Ramalho pensava em Deus dessa maneira. Ele estava quase entendendo. Sua falta de conhecimento religioso lhe ajudava. Ele nunca se interessou por religião. Sendo malandro, entendia a malandragem das igrejas. Por isso preferia vender drogas ao invés de vender mentiras.
Mas para entender mesmo, Ramalho teria que sair da prisão do materialismo. E não se pode sair do materialismo através do pensamento objetivo, pois o que são paredes, grades e fechaduras senão objetos?