Quando eu era criança, por volta de dez anos de idade, uma vizinha me levou para assistir um filme horrível, junto com o filho dela, que era meu melhor amigo. Era um filme em espanhol com legenda. O filme se chamava: Cria Cuervos.
Cuervos é corvos em espanhol. Cria Curvos é criando corvos. Só descobri isso depois de adulto. Na época eu até achava que Cria Cuervos era uma palavra só, tipo um nome próprio, ou um sobrenome. Depois de adulto, descobri também que Cria Cuervos é abreviação de um ditado da cultura espanhola: “Crie corvos e eles te arrancarão os olhos”.
Não sei o que deu na cabeça da mãe desse meu amigo para levar duas crianças de dez anos para assistir um filme tão depressivo como esse. Contudo, eu adorei o filme. Eu me identifiquei com a tristeza da protagonista, que era uma menina em conflito com a vida a dos adultos, que não conseguia entender o comportamentos dos seus pais e se trancava no quarto para ouvir sempre a mesma música. Essa música aqui. (Porque te vás)
Eu me apaixonei por essa música. Tanto que saí do cinema cantarolando o refrão. Foi então que minha vizinha, a mãe do meu amigo, duas semanas depois me deu um disco com essa música do filme. Era um compacto, ou seja, um disco com duas músicas, uma música de cada lado. De um lado tinha a música do filme, “Porque tê vás”, do outro lado tinha outra música, mais triste ainda, chamada: “Soy rebelde”.
Até hoje essas duas musicas tocam dentro da minha cabeça. Sou rebelde toca mais recorrentemente porque é mais expressiva. Diz respeito a revolta, a rebeldia, mas se trata de uma revolta baseada no sentimento de vítima e de vingança. O que leva ao motivo de estar citando essa música que trata sobre o comportamento de um Hater.
Sou rebelde é o melô do Hater. Vou ler a letra da música trocando a palavra “Rebelde” por “Hater” e você vai ver que tenho razão.
Eu sou um Hater / porque o mundo quis assim / Porque nunca me trataram com amor / e as pessoas se fecharam para mim / Eu sou Hater / porque sempre sem razão / me negaram tudo aquilo que sonhei / e me deram tão somente incompreensão / Eu queria ser como uma criança / cheia de esperança e feliz / E queria dar tudo que há em mim / Tudo em troca de uma amizade / E sonhar e viver / esquecer o rancor / E cantar e sorrir / e sentir só o amor
Agora vou falar de outro filme, tão triste quanto Cria Cuervos. Mas esse eu não assisti quando era criança, esse eu assisti recentemente, no youtube. Esse filme se chama “A girl named sooner”. Em português o título é “Uma menina chamada Cedo”.
É um filme muito antigo e a cópia no youtube é péssima. Mas assisti mesmo assim. Estava curioso porque me contaram de uma cena desse filme que achei muito singela, poética, e ao mesmo tempo dolorosa e impactante. Vou contar um pouco da história do filme e descrever a cena.
Cedo é uma menina que morava no mato e foi adotada. Ela tem um passarinho. Quando Cedo foi adotava, ela levou o passarinho junto com ela para casa nova. Colocaram ela na escola. Só que Cedo é caipira e os colegas de escola não aceitam ela. Um dia, na sala de aula, durante uma aula, Cedo conta para professora que ela tem um passarinho de ESTIMAÇÃO.
Vou destacar a palavra ESTIMAÇÃO, lembrando que estimação é algo pelo qual temos estima, que é valoroso para nós.
Voltando a história… Cedo conta para professora que tem um passarinho de ESTIMAÇÃO que não voava, que é um amigo que fica sempre com ela.
Nesse momento os colegas de classe se interessam e querem ver o passarinho. Cedo fica contente com o interesse dos colegas por ela, pois era a oportunidade dela finalmente fazer AMIZADE com eles. Então, Cedo leva os colegas de classe para casa dela, para que eles vejam seu passarinho de estimação.
Cedo pegou seu passarinho de estimação e o coloca no chão, mostrando que ele não voa. Os colegas de classe começaram a bater o pé no chão para dar um susto no passarinho e fazer ele voar.
E CEDO IMITA OS COLEGAS.
Cedo começa a bater o pé também, para fazer o passarinho voar. Só que o passarinho não voa mesmo. Então, os colegas de classe começam a atirar pequenas pedras no passarinho para assustar mais ainda e fazer o passarinho voar…
E CEDO IMITA OS COLEGAS.
Cedo começa a atirar pedras no seu passarinho de estimação.
E assim vai, até que o passarinho morreu apedrejado.
Agora você começa a entender porque comecei citando a música Sou Rebelde.
“E queria dar tudo que há em mim, tudo em troca de uma amizade”
Assim que o passarinho morreu, os colegas de escola foram embora e Cedo ficou sem o único amigo de verdade, seu passarinho de ESTIMAÇÃO.
Cedo não se perdoou pelo que fez.
Se Cedo vivesse nos dias de hoje, e os colegas de escolas dela fossem machista, fumantes, comunistas e pagodeiros, por exemplo. Cedo seria uma Hater de machistas, fumantes, comunistas e pagodeiros.
E por que? Porque o ódio e a revolta de Cedo seria de si mesma projetado nos outros.
Cedo não estimou a si mesma, não deu valor ao que era valoroso para ela. É na depreciação de si que começa o ódio, a revolta, a rebeldia contra o outro. Atiramos pedras do lado de fora e nos outros porque do lado de dentro fazemos o mesmo com nós mesmos. Claro que não temos consciência disso, mas é isso que acontece.
Viver é traumatizante. Cedo vai carregar para sempre essa mágoa de ter trocado uma pérola de plástico, a amizade falsa, por uma pérola verdadeira, a amizade verdadeira do seu passarinho.
Essa mágoa de si mesma nunca irá desaparecer. Apagar a mágoa não é opcional. Opcional é como lidamos com a mágoa. Opcional é como Cedo irá usar sua mágoa de si mesmo. Cedo pode usar sua mágoa de ter apedrejado o seu próprio valor de duas maneiras:
Cedo pode se tornar uma Hater e passar a vida tacando pedra na estimação dos outros. Ou cedo pode se tornar uma Lover de si mesma, amante de si. Olhar todo dia para sua mágoa e afirmar com força e convicção: DA PRÓXIMA VEZ NÃO HAVERÁ PRÓXIMA VEZ!!!!
Fim do ódio, começo do amor a si mesma.
E aí, a sua opção é por ser um hater ou um lover?
Pensa nisso! Pensaê!