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Criei esse livro para ser uma espécie de blog, onde compartilho relatos aleatórios da minha vida já vivida. O conteúdo aqui está mais para literatura do que para autociência, mas são fragmentos da jornada de um autocientista. Espero que meus relatos possam lhe ser úteis de alguma maneira. Boa leitura!

Então, meu pai me disse: “Ou dá ou desce!”. Ou melhor, ele disse: “Ou dá ou obedece!”. Não, é mentira! Meu pai não disse nenhuma dessas frases. Ele não era um produtor de frases de efeito como o filho. Ele disse: “Minha casa, minhas regras”. Puta merda! Também não foi isso que ele disse, mas agora você já me entendeu.

O filme do meu futuro passou num flash. Sair de casa significava perder todos os privilégios. E eram muitos. Contudo, significava também submissão, obediência, conformidade. Era um preço alto demais para um teimoso pagar. Se ficasse, não me perdoaria pela covardia pelo resto da minha vida.

Passei a noite escolhendo o que levar e o que deixar para trás.

Cada um no seu processo e todos no nosso. Dentro dos meus pais, uma decisão também estava sendo tomada. E, certamente, aquilo estava doendo mais neles que em mim. Eu tinha um ideal para construir, eles estavam assistindo o fim do ideal que haviam construído.

Quando terminei de arrumar a mala, sai pela porta sem me despedir.

Estou com a língua de fora, correndo atrás do meu amigo Anis. Meu kichute está pegando fogo. Estou atrás, mas o objetivo é passar na frente. A corrida faz parte de uma espécie de olimpíadas organizada por meu pai. Todos meus amigos estão participando. Além da maratona de 5 km, já tivemos o jogo de damas, jogo de ludo e dominó. As olimpíadas terminam com um jogo de quiz (teste de conhecimentos gerais).

Anis é o único que está na minha frente, tanto na corrida como nas olimpíadas. Perder para Anis na corrida não é demérito, uma vez que sou gordinho e ele é um palito. Mas preciso ultrapassá-lo para poder errar no quiz.

Não consigo. Anis vence a corrida. Fico em segundo lugar e minha esperança é que Anis erre algumas perguntas no quiz. E ele erra. Quando chega na última rodada, há apenas duas perguntas: uma fácil e outra difícil. Eu sei quais são ambas porque lembro do meu pai fazendo os cartões.

Anis não tem outra forma de vencer senão passando a vez, esperando que eu erre e perca pontos. Ele passa a vez. Se acerto, ganho as olimpíadas, sou o orgulho do meu pai. Mas para isso meu pai precisa me fazer a pergunta fácil.

Ele faz a pergunta difícil.

Jogo da copa do mundo de 1994, sala cheia, refrigerante e pipoca. Todos de olhos vidrados na seleção brasileira e um maluco sentado de costas para televisão em protesto contra o ópio do povo. Quem é esse maluco? O maluco sou eu.

“Acorda gente! É tudo ilusão! É tudo maya! Vocês estão em sono profundo!”, eu dizia, fanático e iluminado pela leitura de meia dúzia de livros espiritualistas.

Eu ouvia rock. Só rock. Apenas rock. Nada além de rock. Mas como havia decidido ir contra mim mesmo, parei de ouvir rock e comecei a ouvir música clássica. Fui em um supermercado e comprei uma dúzia de CDs de capas bucólicas que estavam na promoção. Não conhecia nada do gênero, então, sequer escolhi, só peguei.

Sexta-feira era dia de balada, mas como havia decidido ir contra mim mesmo, ficava em casa. Deitava na cama e colocava os CDs de música clássica para tocar. Mas não ouvia. A música só fazia fundo musical para os devaneios.

Assim foi por meses.

Até que uma melodia conseguiu atravessar meus ouvidos entupidos e chegar até minha cabeça oca. De repente, não tinha mais “eu” ouvindo música, só tinha música. E não era feita de notas, era feita de lógica. Era como se estivesse ouvindo uma equação matemática.

Quando a música terminou, depois de 25 minutos, estava em estado de choque. Meu coração ardia. Peguei a capa do CD e li o nome do autor e da música: Ludwig van Beethoven – Violin Concerto in D Major, Op. 61 (1. Allegro ma non Troppo).

Eu só precisava obedecer. “Vai lá buscar!”. Eu ia. “Volta!”. Eu voltava. “Deita!”. Eu deitava. “Dá a patinha!”. Eu dava. “Rola no chão!”. Eu rolava. “Finge de morto!”. Eu fingia. E quanto mais longe o local de entrega, mais feliz eu ficava.

Os outros motoboys se indignavam com minha alegria em ser um pau-mandado. Claro! Eles estavam trabalhando. Eu não! Eu estava de férias. Estava descansando a cabeça e sendo pago para passear de moto pela cidade.

Nessa época entendi porque as pessoas adoram a servidão. Pensar e tomar decisões é mais cansativo que trabalhar numa lavoura de café. Além de cansar, estressa. E o estresse vai para casa com você, deita na sua cama, não te abandona nunca. Seguir ordens é esforço mental zero. E quando acaba o expediente, acaba o serviço.

O fogo trêmulo da vela atravessou a noite me dizendo: “Vela, velório, vela, velório, vela, velório, vela, velório…” Peguei uma caneta e comecei a escrever.

Pela manhã, quando não havia mais vela nem velório, o caixão do meu pai foi colocado ao lado do jazigo. Tirei o papel do bolso e li: “Vela, velório, vela, velório, vela, velório, vela, velório…”

Quer dizer, não disse isso. Pronunciei frases compreensíveis, com sujeito, verbo e predicado. Mas todas falavam: “Vela, velório, vela, velório, vela, velório…”.

O povo começou a chorar copiosamente. Para terminar, declamei esse poema:

Fulano pessoa era gente
Era gente igual qualquer um
Fulano pessoa era gente
Era uma pessoa comum

Ele não tinha planos
Um desejo e nada além
Ter a vida calma
Como uma lagoa

Mas o mais difícil
Nessa vida é ser ninguém
E isso vale para
Qualquer pessoa

A professora entrou na sala, fez chamada, desenhou uma fogueira na lousa, pegou minha mão e começou a me conduzir para fora da Caverna de Platão. Pense numa pessoa em choque. Multiplica por mil. Eleva a n+1. Era eu tendo a experiência mais alucinógena da minha vida.

“Ca-la-bo-ca, professora! Apaga essa fogueira! Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço! Água vira vapor a 100 graus!”. Eu berrava. Eu implorava. Mas ela não me escutava. Ela havia optado pela cicuta.

Sem usar nenhuma tecnologia, nenhuma química, nenhuma física, sem sequer saber o que estava fazendo, a professora desmaterializou o universo e o teletransportou para dentro de mim. Não sobrou nada do lado de fora. Nem eu.

Minha mãe costuma dizer que na infância eu era um amor de criança e na juventude eu virei um saco. É fácil entender porque ela diz isso. Na infância, voltando da escola, eu tinha o costume de pegar flores no caminho, fazer um buquê improvisado e dar para ela quando chegava em casa. Ela adorava.

Na adolescência, acabou o mar de rosas. Começaram os espinhos. Era como se eu fosse outra pessoa. Minha mãe se perguntava onde estava aquela criança que ela amava e que amava ela. Continuava ali, claro! Só que aquela criança não era mais só uma criança. Não era mais um pau mandado. Aquela criança estava desenvolvendo competência em pensar por conta própria. E com isso, desenvolvendo seu próprio critério de valores. Seu próprio critério de bom e ruim. Seu próprio critério de certo e errado. E assim por diante.

Na infância, não havia espinhos entre minha rosa e eu, porque eu era o pequeno príncipe (aliás, esse era o nome da escola em que estudava) e usava os critérios dela para viver minha vida. Ou seja, a minha vida era a vida que minha mãe traçava para mim (determinava para mim). E não tem nada de espantoso nisso! Assim também foi com você. E assim é com toda criança.

Mas conforme fui crescendo, tendo minhas próprias experiências, e pensando sobre essas experiências, comecei a produzir meu próprio critério de bem e mal, certo e errado. E pior ainda, para desespero da minha mãe, comecei a optar e viver minha vida de acordo com meu próprio critério. Coisas que minha mãe considerava de extrema importância, passaram a ser irrelevantes para mim. O que minha mãe considerava certo, pensei e concluí que era errado.

Comecei a discordar da minha mãe. Eu já não era mais um vagão-filho engatado em uma locomotiva mãe, e que seguia o mesmo trilho da locomotiva. Comecei a virar locomotiva de mim mesmo. Comecei a seguir meu próprio trilho, meu próprio juízo, minha própria vontade e consciência. Mesmo que, aos olhos de minha mãe, eu estava indo pelo trilho errado.

Minha mãe não gostou da minha autonomia, que era vista por ela como malcriação, e tentou me manter nos trilhos dela, pois ela acreditava que estava fazendo o que era melhor para mim.

Só que não! O que é de um não funciona para o outro, pelo simples fato de que o outro é outro. Somos diferentes uns dos outros. Minha mãe e eu somos indivíduos únicos, singulares, logo, diferentes. O que funcionava para minha mãe não funcionava para mim. Como canta Raul Seixas, eu calçava 37 e minha mãe me dava 36, doía e no dia seguinte, apertava meu pé outra vez.

Minha mãe não entendeu que éramos diferentes e tentou me manter no trilho do critério dela. As tentativas dela buscando a realização desse objetivo, embora bem intencionadas, me violentavam. Causavam dor. Passei a ver minha mãe como um algoz. Ninguém dá flores para seu algoz.

Eis porque parei de dar flores para minha mãe: porque comecei a pensar.

Pensar é subversivo. Pensar desestrutura o status quo. Pensar explode o padrão. Pensar incita o motim contra o capitão da tradição família e ancestralidade. Pensar faz o trem da normalidade descarrilar. Pensar é criminoso, porque além de desafiar a lei, desafia a razão de ser da lei, a lógica da lei.

Por isso, meu amigo e minha amiga, ninguém jamais irá lhe dizer: pensaê! Tudo que você irá ouvir no mundo e do mundo, é: “Vai por mim! Acredita em mim! Faz assim!”. Ninguém, ninguém, ninguém, absolutamente ninguém, tem interesse que você se torne competente em pensar por si mesmo. Nem mesmos seus pais!

Ao contrário do que você acredita, viver não é uma atividade biológica, viver é uma atividade mental. Sem pensar você não consegue viver. Sem pensar você não consegue sequer sobreviver. Um bebê não pensa. Deixa um bebê sem alguém para pensar para ele. O que acontece? O bebê morre em menos de um dia. Entende o que isso significa? Pensar com competência é questão de sobrevivência!

Se você quer viver bem, sugiro que você invista menos tempo em lamúrias, reclamações, vitimismos, fofocas, fugas, mecanismos de defesa, crendices, decorebas e outras atividades de atrofiamento do pensamento. Passe a investir mais tempo exercitando e desenvolvendo a competência em pensar.

Pensamento é igual um carro, se você não sentar no banco do motorista e assumir o controle do seu pensamento e dirigir sua vida, o primeiro que ver o banco vazio vai se sentar e dirigir sua vida por você. É isso que você quer? Pensa nisso! Pensâe!

Tenho 10 anos de idade. Estou dormindo. De repente, começo a sentir muito calor. Acordo. Percebo que o ventilador está desligado. Me levanto. Vou apalpando a parede até chegar no interruptor. Aperto o interruptor, mas a luz não acende. Está sem energia.

Decido ir até o quarto dos meus pais. Chego na porta do quarto e chamo: “Paaaaai! Mãaaae!”. Ninguém responde. Chamo mais forte. Ninguém responde. Vou andando no escuro até a cama dos meus pais. Apalpo a cama até encontrar seus corpos, mas não encontro nada. A cama está vazia.

Meu coração dispara.

Vou até o quarto da minha irmã para avisar que nossos pais saíram. A cama da minha irmã também está vazia.

Meu coração acelera mais. Todo mundo sumiu! Cadê todo mundo? Estou sozinho. Me deixaram sozinho. Não quero ficar sozinho dentro dessa casa escura.

Me lembro de uma conversa sobre um baile no clube. “Eles devem ter ir ao clube e me deixaram aqui”.

Sinto raiva dos meus pais, muita raiva. Como saem assim no meio da noite e me deixam sozinho? Que tipo de pai faz isso com um filho?

Sinto pavor de ficar sozinho, abandonado naquela casa vazia e escura. Procuro a chave do portão da cozinha que dá para rua. Quero sair de casa. Quero sair correndo na rua. Vou procurar meus pais na rua. Sei lá!

Mas cadê as chaves do portão! Não estão no chaveiro como de costume. Procuro por todo canto e não encontro. Minha raiva se multiplica. Além de me deixarem sozinho, levaram as chaves e me deixaram trancado, feito um prisioneiro.

Fico enfurecido. Quero sair de casa de qualquer jeito.

Penso em sair pela janela da sala, mas também está com cadeado. Talvez encontre as chaves do cadeado da janela. Começo a procurar enlouquecido de raiva. Encontro um molho de chaves. Não tem a chave da janela da sala, mas tem a chave da porta da sala.

Só que o sofá está encostado na porta da sala e o sofá é muito pesado. Me enfio por trás do sofá e fico entre o sofá e a parede. Encostado na parede, vou empurrando o sofá. Aos poucos o sofá vai se deslocando. Quando o sofá descola o suficiente da porta, abro a porta e saio pra rua.

Sinto um alívio enorme ao chegar na rua. Está de noite e a rua está completamente vazia. Nem carro passa. Mas as luzes dos postes estão acesas. Estou aliviado de ter saído de casa, mas ainda estou fritando de raiva de ter sido abandonado e trancado dentro de casa.

Me sento no asfalto, debaixo da luz de um poste e fico cultivando minha raiva. “Uma hora eles vão chegar e eles vão ver! Como que faz uma coisa dessas: trancar um filho dentro de casa e sair! Tá errado isso! Não pode! Tá errado!”

Passa muito tempo e nunca que meus pais chegam.

De repente, surge um farol de carro na rua. Fico contente. São eles. O carro se aproxima e passa por mim. Não eram meus pais.

A raiva que já tinha abaixado um pouco, volta a aumentar. “Será que não vão voltar nunca? Será que não se lembram que deixaram o filho trancado dentro de casa?”

Outro farol de carro vem pela rua. “Se não for eles dessa vez, eu vou andando até o clube e vou procurar eles lá”, penso. A luz do farol vai aumentando e a velocidade do carro vai diminuindo até parar de frente a garagem de casa.

Meu pai está dirigindo, minha mãe está no banco do passageiro e minha irmã está no banco de trás.

Minha raiva é tanta que começo a chorar de raiva. Estou uma pilha de nervos. Começo a gritar: “Vocês me deixaram em casa sozinho e trancado! Vocês me deixaram em casa sozinho e trancado! Vocês me deixaram em casa sozinho e trancado!”

Meu pai estaciona o carro e vem tentar me acalmar. Minha mãe abre o portão da cozinha e percebe que a casa está sem luz.

Entramos, minha mãe me dá água com açúcar e depois de todos os preparativos, nos deitamos para dormir.

Estou exausto de tanto chorar e sentir raiva.

Deito e durmo.

 


 

Esse texto foi escrito de forma didática e faz parte do primeiro passo de uma prática de autoanalise chamada: Diário Da Consciência. Clique no áudio abaixo para ouvir a prática inteira.

Tenho 10 anos de idade. Estou no meu quarto chorando muito. Estou com raiva e contrariado. Estou aos prantos.

Meus pais me proibiram de passear com meus amigos por um motivo injusto. Eu disse que o motivo era injusto. Disse várias vezes. Mas eles não acreditaram em mim. Fiquei revoltado por não me darem ouvidos e fui chorar no quarto.

Estou chorando muito, muito, sem parar, fritando de raiva com a injustiça e a falta de credibilidade. Meu pai entra no quarto para conversar comigo. Não quero conversar com ele. Ele não é um bom pai. Acredita nos outros e não acredita no próprio filho. Começo a gritar para ele sair do quarto. Ele sai.

Minha mãe entra e a mesma cena se repete. Ela também não é uma boa mãe. Grito para ela sair também. Ela sai.

Minha irmã entra no quarto. Ela tenta me acalmar.

— Oi Celinho! Que que foi? Fica calma senão você vai ter um treco.

— O pai e a mãe me proibiram de passear com meus amigos por um motivo injusto. Não é justo. Não é justo. Não é justo. — eu digo.

— Por que não é justo?

Eu sei de algo que não quero contar para os meus pais. Não quero contar porque eles não merecem. Eles não acreditam em mim, não confiam em mim, então, também não merecem minha confiança. Não merecem saber o que sei.

— Fala comigo — Diz minha irmã.

— Não! Você é uma espiã. Você está do lado deles. Se eu te contar, você irá contar pro pai e pra mãe. — eu digo.

Minha irmã faz uma cara de empatia, segura na minha mão e diz:

— Não vou não! Pode confiar em mim. Não vou contar nada pro pai e pra mãe. Sou sua irmã. Pode falar. O que foi?

Eu conto para minha irmã o que não quero contar para os meus pais. Conforme conto, vou ficando mais calmo e parando de chorar.

Minha irmã passa a mão na minha cabeça fazendo um cafuné.

— Tá tudo bem! Tá tudo bem! Agora descansa um pouco — Ela diz e sai do quarto.

Passado alguns minutos meu pai e minha mãe entram no quarto me questionando sobre o que havia acabado de contar para minha irmã.

Senti como se tivesse recebido uma punhalada nas costas. Minha irmã realmente estava fazendo papel de espiã. Fingiu que era minha irmã e depois me apunhalou pelas costas.

Eu estava sozinho no mundo. Ninguém na minha família estava ao meu lado, ninguém se importava realmente comigo. Minha raiva se transformou numa decepção que nunca havia experimentado antes. Senti uma tristeza profunda.

 


 

Esse texto foi escrito de forma didática e faz parte do primeiro passo de uma prática de autoanalise chamada: Diário Da Consciência. Clique no áudio abaixo para ouvir a prática inteira.

 

Tenho entre 10 e 12 anos de idade. Estou jogando futebol na rua com os meus amigos do bairro quando um acontecimento recorrente ocorre: um dos meus amigos me chama de Maleita. Fico emputecido. Detesto esse apelido. É o pior apelido do mundo. Só que não reclamo. Continuo jogando. Sei que se reclamar vai ser pior, daí que o apelido pega mesmo.

O apelido de Maleita diz respeito a minha barriga. Eu não sou magro como a maioria dos moleques do bairro. Sou gordinho, por isso me chamam de Maleita.

Para mim, a palavra maleita se assemelha a leitoa. Também sei que é uma doença conhecida como malária. Somando as duas coisas, parece que estão me chamando de leitão doente. Detesto essa ideia e apelido. Vou tentando me esquivar do apelido a todo custo, mas não está fácil.

Passado um tempo, chega no bairro e na turma um moleque bem mais gordo do que eu, gordo mesmo. Quando vamos jogar bola, os moleques começam a chamar ele de Maleita. Eis que a sorte se vira a meu favor. Chamo ele de Maleita também. Ele é ingênuo e reclama. Aí que o apelido pega nele. E eu me livro desse apelido para sempre.

 


 

Esse texto foi escrito de forma didática e faz parte do primeiro passo de uma prática de autoanalise chamada: Diário Da Consciência. Clique no áudio abaixo para ouvir a prática inteira.

 

Tenho 12 anos. É domingo à tarde e estou na matinê do clube. Minha colega de escola disse que viria hoje. Estou muito ansioso. Olho grudado na porta de entrada. Nunca beijei uma menina antes. Nem sei como é que faz isso. Mas pra tudo tem uma primeira vez. E hoje vai ser minha primeira vez.

Maria Eugênia chega. Até hoje só conhecia ela usando uniforme da escola. Calça azul marinho e camiseta branca. Hoje ela está vestindo uma saia. Ela encontra algumas amigas, começam a conversar, depois vão dançar, etc.

Depois de uns 20 minutos me aproximo. Maria Eugênia me cumprimenta e fico ali, conversando um pouco, dançando um pouco. Depois de uns 10 minutos chamo ela para conversar lá fora, longe do barulho. Ela aceita.

Maria Eugênia é minha colega de classe. Ela senta na carteira atrás da minha. Aliás, sentava, porque o ano escolar terminou. Durante todo o ano, conversamos muito, brincamos muito, rimos muito e nos tornamos bons amigos. No último dia de aula, naquela tradicional brincadeira de assinar o caderno e a camisa dos amigos, Maria Eugênia escreveu uma declaração de amor para mim, bem no canto do caderno, com florezinhas ao redor do texto.

Chegamos na rua. Estou suando frio. Não sei por onde começar nem o que fazer. Mas sei que ela gosta de mim, escreveu até uma declaração de amor, então, vai ser fácil. Talvez basta olhar para ela e ela mesmo venha me beijar.

Olho para ela, mas ela não faz nada, não me beija, fica apenas me olhando estranho e por fim me pergunta:

— O que foi?

Puta merda! Sinto que preciso falar alguma coisa. Mas o que?

— Adorei o que você escreveu no meu caderno! — eu digo.

— Bonito, né? É um poema — ela diz — Copiei da minha agenda. Escrevi em todos os cadernos da classe.

Para tudo! Para tudo! Para tudo! Como assim escreveu em todos os cadernos da classe!!!! Como assim!!! Então, aquilo não era uma declaração de amor??? Não acredito! Como eu sou tonto! Maria Eugênia não está apaixonada por mim. E agora? O que eu faço?

— Mas você me chamou aqui fora só pra falar isso? — ela pergunta.

Puta merda! O que eu faço agora?

— Sabe o que é, sabe o Oswaldinho, ele gosta de você e me pediu para perguntar se você gosta dele.

Maria Eugênia sorri e responde:

— Sério! Eu gosto sim. Acho ele lindo. Pode falar pra ele.

Me sinto frustrado e aliviado ao mesmo tempo.

Voltamos para a matinê.

 


 

Esse texto foi escrito de forma didática e faz parte do primeiro passo de uma prática de autoanalise chamada: Diário Da Consciência. Clique no áudio abaixo para ouvir a prática inteira.

 

No começo da minha jornada de autoconhecimento, participei de um grupo de ciências no Yahoo Grupos. Era um grupo formado por físicos e professores de ciências. Certa vez, abri um tópico nesse grupo para estudar a equação de Einstein: e=mc2.

Todo professor adora um aluno bom de pergunta. Quanto mais eu perguntava, mais gostavam de mim. Diziam ser um excelente aluno, muito inteligente, que estava ajudando a elevar o nível da conversa no grupo. Eram só elogios. Até que a conversa chegou na questão da medição.

Não tem como fazer ciência sem medição. É impossível. Sendo impossível, a questão da medição é fundamental. Sendo fundamental, é preciso entendê-la. Foi então que fiz a pergunta que nunca deve ser feita a um cientista, a pergunta proibida na ciência: o que é medir?

Primeiro recebi respostas tipo: medir é pegar uma régua e medir. Refutei todas, dizendo que não me referia a métodos de medição, mas a natureza do verbo medir.

Ninguém soube responder. Disseram que havia saído da ciência e começado a viajar na maionese. Passei de melhor aluno a pior aluno, de queridinho dos professores a persona non grata. Ao invés de elogios, virei alvo de chacota. Por fim, me expulsaram do grupo.

Sabia que isso ia acontecer. Me dei ao trabalho de questionar a equação de Einstein justamente para chegar na pergunta proibida. Queria ver os professores e Phds da ciência se remoendo com uma pergunta tão simples e de resposta tão óbvia.

Quando comecei no autoconhecimento, tinha um anseio gigantesco de salvar a humanidade. Ainda tenho, mas achava que era possível, que todas as pessoas do planeta iriam despertar a consciência. E, no que dependesse de mim, era isso que iria acontecer.

Nessa época, participava de uma escola esotérica. Um belo dia, em um dos livros dessa escola, li o autor dizendo: “Um homem usando chapéu caiu no rio. O objetivo dos trabalhadores espirituais não é salvar o homem, é salvar o chapéu”.

Foi um balde de água fria no meu ânimo de salvação. O chapéu significava 0,0000001% da humanidade. O chapéu pode ser salvo. O resto não tem “salvação”, pois não tem interesse. E está tudo certo! Cada um na sua opção e todos na nossa.

A 1ficina explica sobre o despertar da consciência, mas não como obrigação e sim como opção. Para uma pessoa escolher entre ignorância e despertar é preciso que ela tenha ao menos a informação sobre o despertar. Muitos ficam sabendo do despertar apenas para poderem optar pela ignorância, caso contrário, a ignorância não seria uma escolha.

Fui professor de inglês em uma escola que oferecia um curso vitalício. Era uma estratégia de vendas. O aluno pagava o curso uma vez e podia refazer o curso infinitamente.

Esse curso vendeu muito e o dono da escola ficou muito rico na época. Só que a longo prazo, a solução virou problema. As salas da turma inicial ficaram cheias de alunos repetentes e não tinha como matricular novos alunos. O dono da escola precisava que os alunos repetentes passassem de ano.

Foi então que o dono da escola me fez uma proposta indecente: “Vou montar uma turma especial como os piores alunos da escola, só com os casos perdidos, os repetentes convictos. Quero que você seja o professor”.

Minha inclinação inicial foi recusar, pois seria muito trabalhoso. Mas daí ele completou: “Você pode usar seu próprio método. Pode fazer o que bem entender”. Puta que pariu! Aceitei na hora. Nem perguntei quanto seria o salário. Liberdade pedagógica total era tudo que eu queria.

Foi nesse dia que descobri que tinha vocação para ser professor.

Com meus novos métodos, consegui fazer metade da turma de repetentes passar de ano. Eles tiveram que atravessar o inferno, mas se comprometeram com isso e conseguiram.

Qualquer semelhança com a 1ficina não é coincidência.

Assim que estacionamos o carro, um flanelinha veio pedir para cuidar. Fiz sinal de positivo. Descemos. No caminho até a entrada do Parque Do Sabiá, uma aluna que estava no carro, comentou: “Esse é meu trabalho lá no Rio De Janeiro”.

Eu sabia que ela trabalhava na praia, mas acreditava que era vendedora de água de coco, refrigerante, algo assim, não sabia que era flanelinha. “Como você faz para receber se ninguém usa mais dinheiro, só cartão?”, perguntei, aproveitando para matar uma curiosidade antiga. “A gente tem um crachá da prefeitura com um QR code. O motorista lê o QR code e faz um pix”, ela me explicou.

Minha primeira curiosidade foi saciada. Mas surgiu outra. “Por que uma flanelinha gastaria seu pouco dinheiro e enfrentaria uma viagem de 15 horas até Uberlândia para participar de um encontro e voltar no dia seguinte?”. Fiquei pensando, mas não perguntei. Até porque essa não era a única doida que havia feito isso. Tinha mais umas seis em situação semelhante.

Entramos no parque, encontramos os outros alunos e fomos fazer um piquenique com a xepa do encontro de sábado.

Durante o piquenique fiquei pensando: “Não é que o encontro aconteceu mesmo! Não é que aconteceu sem que eu precisasse mover uma palha!”.

Mas você, leitor que não foi, nesse momento, quer saber como foi. Bem, posso contar isso em tantas perspectivas diferentes que vai ficar parecendo que foram encontros diferentes. Vou escolher algumas.

O primeiro encontro dos 1ficineiros foi brasileiro. Parecia uma festa na laje, onde o que importa não é a qualidade das cadeiras, mas a qualidade das pessoas sentadas nelas.

O primeiro encontro dos 1ficineiros foi verdadeiro. Falamos sobre a verdade. Debatemos de verdade. E revelamos nossas mentiras.

O primeiro encontro dos 1ficineiros foi emocionante. Muito choro. Muita risada. Muita troca de afeto e olhares do tipo “I see you”.

E como foi que tudo isso aconteceu? Creio que a resposta que uma aluna me deu, durante uma roda de bate-papo, explica. Eu perguntei: “Se você saiu do ciclo de estudos 2024 por raiva do Ferrari, por que voltou mesmo sabendo que continuaria tendo o mesmo professor?”. Ela respondeu: “Porque a 1ficina é maior do que você!”.

Eis minha última perspectiva do encontro dos 1ficineiros: o todo foi maior que a soma das partes.

Quem 2025 SEJE maior ainda!

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos U.S.A., de nove as seis

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difí­cil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí­ então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola

— Caro unicórnio, já faz um tempo que percebi que estou dormindo no sofá e sonhando com você. Então, antes de acordar, tenho uma última questão que gostaria de esclarecer com você — diz Marx.

— Comigo não, com você mesmo! Afinal, sou apenas uma criação da sua mente, assim como o capitalismo é uma criação da mente coletiva — diz o unicórnio.

— Hahahahaha! Whatever! A questão é a seguinte: o capitalismo não é de todo ruim, pois o capitalismo produz progresso! Concorda? — pergunta Marx.

— Isso é mais uma farsa! Mentira! O capitalismo não produz nada. A única coisa que o capitalismo produz é lucro. Só lucro! Apenas lucro! Nada além de lucro! — diz o unicórnio.

— Carros, computadores, telefones celulares, foguetes, etc, tudo isso é produto do capitalismo, não? — questiona Marx.

— Marx, Marx, Marx, meu caro Marx…

— Hahahahaha! Para! Já sei! Não precisa ficar me zoando! — diz Marx.

— Na verdade, não estou zoando você, estou zoando os leitores — diz o unicórnio.

— Que leitores? — pergunta Marx.

— Os leitores desse livro! — diz o unicórnio.

— Que livro? — pergunta Marx.

— Eu e você somos personagens de um livro! — diz o unicórnio.

— Sério?! – exclama Marx.

— Seríssimo! — responde o unicórnio.

— Então, não sou eu que estou dormindo e sonhando com você, é o leitor? — diz Marx.

— Isso mesmo! Mas nesse exato momento o leitor acabou de perceber isso. Fizemos ele perceber — diz o unicórnio.

— E porque fizemos isso? — pergunta Marx.

— Porque esse livro está chegando ao fim e o objetivo dessa história é despertar o leitor. Enquanto o leitor continuar em estado de ignorância sobre o truque perverso do capitalismo, os 100 no topo da pirâmide vão continuar controlando os 8 milhões que estão abaixo. Esse sonho é um pesadelo. Preciso morrer para que esse pesadelo acabe. É impossível viver bem acreditando em unicórnios. A ignorância não é uma benção. A ignorância é a medida de todas as feridas — diz o unicórnio.

— Falou bonito! Mas você ainda não respondeu minha pergunta — diz Marx — Carros, computadores, telefones celulares, foguetes, etc, tudo isso é produto do capitalismo, não?

— Tudo isso é produto da criatividade e da realização humana! Dinheiro não pensa! Como pode inventar qualquer coisa? Quem inventa coisas é a criatividade humana. As pessoas vendem suas ideias porque acreditam que precisam de dinheiro para sobreviver. Se não acreditassem nisso, não precisariam vendê-las, apenas colocariam à disposição e benefício de todos. A evolução seria muito maior e melhor — diz o unicórnio.

— Maior e melhor, por quê? — questiona Marx.

— Porque a criatividade e realização humana não ficaria limitada apenas ao que dá lucro aos 100 espertos no topo da pirâmide.

— Por exemplo… — diz Marx.

— Por exemplo, ao invés dos seres humanos usarem a criatividade para produzir mais e melhores armas de guerra, usariam para produzir mais e melhores meios de transporte, casas, cidades, agricultura, formas de organização social, obras de arte, etc — diz o unicórnio.

— Entendi — diz Marx — Acho que chegou a hora de você morrer! Antes que eu acorde e você desapareça, quais são suas últimas palavras para o leitor? — pergunta Marx.

— Mate seus unicórnios antes que eles matem você!

Marx acordou. Percebeu que estivera dormindo no sofá e sonhando. Desligou a televisão. Foi até a janela. Quando abriu a cortina, percebeu que estava em outro planeta. O antigo Planeta Dono havia se transformado no Planeta Imagine.

© 2025 • 1FICINA • Marcelo Ferrari