Imprimir / PDF

Certa vez, durante uma conversa em grupo, disse que decidimos ser humanos para aprender o que é ser humano. Uma pessoa me perguntou: “Para quê?”. Eu repeti o mesmo que havia acabado de dizer, que decidimos ser humanos para aprender o que é ser humano, pois não há outro jeito de aprender a ser humano senão sendo humano. A pessoa insistiu: “Para quê?”.

Primeiramente não entendi a insistência. Depois tive uma EUreka. Nossa mentalidade adulta é utilitarista, então, nosso entendimento sobre aprendizagem é utilitarista também, é aprendizagem ponte. Por que ponte? Porque segundo nossa mentalidade utilitarista, aprendizagem é meio, é coisa que serve para levar à outra coisa, feito ponte. O ensino primário é ponte para levar ao ensino básico, que é ponte para levar ao ensino médio, que é ponte para levar ao ensino superior, que é ponte para levar ao estágio, que é ponte para levar ao emprego, que é ponte para levar à promoção, que é ponte para levar à gerência e assim por diante. Aprendizagem para nossa mentalidade utilitarista nunca é fim em si mesma, pelo contrário, é sempre o empecilho a ser eliminado para chegarmos ao próximo empecilho a ser eliminado e assim por diante.

Quando respondi que escolhemos ser humanos para aprender o que é ser humano, não estava falando de aprender a brincar, estava falando de brincar de aprender, estava falando de ser humano como fim em si mesmo, como diversão, como prazer de descobrir o que é ser humano. A pessoa repetiu a pergunta porque processou a palavra “aprender” com mentalidade ponte. “Ser humano para quê? Qual é a utilidade? “Ser humano para chegar aonde?”. Essa era a pergunta.

A resposta é: ser humano para ser humano. Só isso. Ser humano não é ponte, não leva a lugar nenhum. Ser humano é uma brincadeira de autorrealização, um jogo, uma EUrekatividade com fim em si mesma. Ser humano é brincar de descobrir o que é ser humano. Só que viciamos em mentalidade utilitarista, então, acreditamos que ser humano é ponte. Por isso nunca chegamos no lugar de onde nunca saímos: no ser humano que somos.

Qual é a utilidade que um alicate tem para si mesmo? Qual é a utilidade que uma goiaba tem para si mesma? Qual é a utilidade que uma galinha tem para si mesma? Qual é a utilidade que a água tem para si mesma? Qual é a utilidade de ser para si mesmo? Nenhuma. Utilidade é sempre para o outro. A única utilidade que um ser tem para si mesmo, é o prazer exclusivo de ser um ser. Analogamente, a única utilidade que você tem para si mesmo, é o prazer exclusivo de ser um ser. Porém, essa utilidade não leva você a lugar nenhum, não é ponte, é fim em si mesma. Então, para mentalidade utilitarista, você ser, é inútil.

Qual é a utilidade que ser mineral tem para um diamante? Qual é a utilidade que ser vegetal tem para uma samambaia? Qual é a utilidade que ser animal tem para um coelho? Qual é a utilidade que ser conforme uma natureza, tem para si mesmo? Nenhuma. Utilidade é sempre para o outro. A única utilidade em ser conforme uma natureza, é o prazer exclusivo de ser conforme tal natureza. Analogamente, a única utilidade que ser humano tem para você, é o prazer exclusivo de ser humano. Porém, essa utilidade não leva você a lugar nenhum, não é ponte, é fim em si mesma. Então, para mentalidade utilitarista, você ser humano, é inútil.

Qual é a utilidade que ser diferente dos outros diamantes tem para um diamante? Qual é a utilidade que ser diferente das outras árvores têm para uma árvore? Qual é a utilidade que ser diferente dos outros cachorros tem para um cachorro? Qual é a utilidade que a unicidade de um ser tem para si mesmo? Nenhuma. Utilidade é sempre para o outro. A única utilidade que a unicidade de um ser tem para o próprio ser, é o prazer exclusivo de ser único. Analogamente, a única utilidade que sua unicidade humana tem para você, é o prazer exclusivo de ser um ser humano único. Porém, essa utilidade não leva você a lugar nenhum, não é ponte, é fim em si mesma. Então, para mentalidade utilitarista, você ser humano singular, único no universo, é inútil.

“Eu não sinto prazer em ser eu”, você pode dizer. Isso acontece porque você não vive sendo você. Você vive sendo outro. Você vive sendo o que seus pais querem que você seja, o que sua sociedade quer que você seja, o que seus professores querem que você seja, o que seus amigos querem que você seja, o que seu marido quer que você seja, o que sua esposa quer que você seja, o que seus filhos querem que você seja, o que sua cultura quer que você seja, o que sua religião quer que você seja, o que os comerciais de televisão querem que você seja. Enfim, você vive sendo o que o outro quer que você seja. Você é você, único, ímpar, singular, diferente, mas você vive em uniformidade. É por isso que você não sente prazer em ser você. Você vive sendo cópia do outro, que vive sendo cópia do outro, que vive sendo cópia do outro e assim por diante. Quando você vive sendo você, originalmente você, singularmente você, inutilmente você, é inevitável sentir o inútil prazer de ser você, também conhecido como felicidade.

Quando eu vivo sendo eu, quando você vive sendo você, surge no universo o maior prazer do universo: o inútil prazer de sermos nós. Esse prazer universal não serve para nada, não é ponte, não nos leva a lugar nenhum, é fim em si mesmo. Então, para mentalidade utilitarista, é a coisa mais inútil do universo.

Quando eu me proíbo de viver sendo eu, quando você se proíbe de viver sendo você, surge no universo o maior desprazer do universo: o útil desprazer de não sermos nós. Esse sim é ponte, serve para nos levar de volta ao inútil prazer de sermos nós.

Imagine que você ainda não é ser humano. Você é um ser, mas não é humano. Daí, você decide brincar de ser humano. Mas antes de entrar na brincadeira, você decide investigar um pouquinho para saber do que se trata. Você vai conversar com alguém que já conhece a brincadeira:

— Como funciona a brincadeira de ser humano?
— É uma brincadeira de autorrealização.
— Como assim?
— Você precisa responder sim ou não.
— Só isso!? Sim ou não?
— Exato! Só responder sim ou não.
— Responder para quem?
— Para si mesmo.
— Como assim?
— Sim pra mim ou não pra mim.
— Só isso mesmo?
— Só isso! Sempre a mesma pergunta.
— O que acontece quando respondo sim pra mim?
— Você experimenta o inútil prazer de ser você.
— E quando respondo não?
— Você experimenta o útil desprazer de ser outro.
— E como a pergunta é feita?
— Através de circunstâncias.
— Então, são muitas perguntas?
— Todas as circunstâncias são a mesma pergunta.
— É muito simples essa brincadeira!
— Sim, muito simples!
— Vou entrar nessa brincadeira.

Você entra na brincadeira e começa a ser humano. Aliás, não entra, já está dentro. Sendo assim, eu te pergunto: ser humano é tão simples como você pensou que era?

PARTICIPANTE: De jeito nenhum, me enganaram!

Qual é a complexidade, se basta responder sim ou não?

PARTICIPANTE: Se eu soubesse o que é sim e não, era simples, só que não sei.

Exatamente! A brincadeira é simples, mas não é fácil. É simples porque basta responder sim ou não. Mas é difícil, pois para responder sim ou não é preciso autoconhecimento, e você chega na brincadeira sem nenhum autoconhecimento, zero, ignorante de tudo, até de que existe. Com autoconhecimento vai ficando mais fácil. A simplicidade de ser humano não muda nunca. O funcionamento da brincadeira é sempre o mesmo: responder sim ou não. Difícil é saber responder sim. Vamos entender melhor isso.

Você quer um morango?

PARTICIPANTE: Sim.

Você respondeu sim para o quê?

PARTICIPANTE: Para sua oferta. Aceitei o morango.

Ótimo! Quando te ofereço morango e você diz sim, você está dizendo sim para minha oferta de morango. Quando você aceita viver sendo você, você está dizendo sim para o quê?

PARTICIPANTE: Sim para mim, para o meu gabarito.

Exatamente. Viver autoísta é SIM PRA MIM. É quando você se permite viver sendo você. Sim pra mim: eu me permito ser eu, eu me permito viver sendo eu, eu me permito viver de acordo comigo. Responder “sim ou não” não é questão de pronunciar a palavra. Se não é uma questão de você falar verbalmente, de pronunciar, então, como é que você responde sim ou não?

PARTICIPANTE: Com o arbítrio.

Isso mesmo! Então, o que é o arbítrio?

PARTICIPANTE: Arbítrio é o jeito como respondo sim ou não.

Exato! Tem dois jeitos de você viver. E só dois:

SIM PRA MIM – Viver Autoísta – Quando você se permite ser você.
NÃO PRA MIM – Viver Outroísta – Quando você se obriga a ser outro.

PARTICIPANTE: Sim é quando opto pelo que é melhor para mim?

Quase. Tem uma sutileza aí. Vamos voltar na intenção. Sua intenção é sempre optar pelo que é melhor para você. Você sempre quer o bem. Você nunca intenciona optar pelo mal. Ninguém tem essa intenção. Então, a intenção é sempre pelo bem. Isso é natural. Todos os seres querem o bem. Uma planta, por exemplo, busca sol e água, ou seja, busca o que faz bem para ela. Mas se todo ser sempre opta pelo bem, então, tem algo errado aí. Pois na prática não é isso que acontece com você. Então, o que que está errado?

PARTICIPANTE: Eu acredito que é melhor, mas me engano.

O que está faltando é a palavra acreditar. Você não opta pelo que é melhor, você opta pelo que ACREDITA que é o melhor. Se você optasse pelo que é melhor, não tinha a experiência humana, não tinha brincadeira de ser humano, porque não tinha essa coisa no meio, que se chama crença. Você opta pelo que você acredita que é melhor, e experimenta sua opção, para colocar à prova sua crença. Se você optasse pelo que era melhor diretamente, não precisava confirmar nada, você já tinha ido direto.

PARTICIPANTE: E o que muda entender isso? Ajuda em quê?

Quando você estiver experimentando uma opção que não é a desejada, você sabe que se equivocou e melhora na próxima opção.

A jornada da autorrealização é a jornada do herói. Um herói é um indivíduo que é colocado à prova e responde SIM PRA MIM. O filme Invencível, que conta uma história verídica, é um desses casos. Tem duas cenas nesse filme que são muito representativas do SIM PRA MIM. Numa cena, o herói do filme está num campo de concentração japonês, só apanhando. Apanha dia e noite. Daí, os japoneses tiram ele do campo de concentração, dão banho, comida, roupas limpas e depois levam ele para um programa de rádio para que ele leia uma carta em público.

— Não vou dizer isso — ele diz aos japoneses.
— Por que não? — perguntam os japoneses.
— Porque isso é mentira — responde o rapaz.
— Se não ler irá voltar para o campo de concentração — ameaçam os japoneses.

O rapaz havia saído de um buraco sujo, fedido e estava no restaurante de um hotel chique, comendo ovos mexidos, tomando suco, sentado numa cadeira confortável, mas optou por voltar para o campo de concentração. O rapaz não se vendeu ao suborno. O rapaz optou pelo SIM PRA MIM.

Outra cena representativa do SIM PRA MIM, é a cena final. O rapaz leva uma porrada na perna e mal consegue ficar em pé. O sargento ordena que ele levante uma viga de madeira acima da cabeça e fique segurando. Se deixar cair, será baleado. O rapaz olha para o sargento e o sargento lhe ordena abaixar a cabeça: “Não olhe para mim!” O que o rapaz faz? Problema seu! SIM PRA MIM. Ele ergue a cabeça e olha no olho do sargento, como quem diz, “Quer me balear? Baleia! Quer dar porrada? Pode dar! Mas em mim mando eu”.

O rapaz não se submeteu à ameaça e à punição. Depois ele ainda levanta a viga de madeira acima da cabeça e dá um puta grito! Um grito que faz o sargento desmoronar por dentro. Que grito é aquele? SIM PRA MIM. O sargento não sabe o que fazer. O que fazer contra um ser que opta pelo SIM PRA MIM? Nada! Quando você opta pelo SIM PRA MIM, pelo inútil prazer de ser você, o outro pode te bater, chicotear, triturar, nada adianta. Você usa seu arbítrio e o outro perde todo o controle sobre você.

PARTICIPANTE: Eu achava que SIM PRA MIM tinha que agradar ao outro também.

Isso é um equívoco muito recorrente. Você quer se permitir viver de acordo com seu gabarito, mas não quer permitir que o outro fique chateado com você sendo você. Assim você continua preso no outroísmo, pois para evitar isso, ou você volta atrás e veste o gabarito do outro, ou então, fica brigando com o outro para aceitar você sendo você. Dois tiros no pé. Pois o outro tem liberdade de não aceitar sua liberdade. E você não precisa da aceitação do outro para se permitir viver de acordo com seu gabarito.

PARTICIPANTE: Mas o outro faz pressão, faz chantagem, etc.

Isso! A tentação do outroísmo não é pouca. Se fosse pouca todo mundo vivia autoísta. Se fosse pouca essa brincadeira era fácil e a sociedade não estava do jeito que está. Você vive de forma outroísta porque a pressão é tremenda. Castigo, punição, etc. Toda vez que você diz SIM, o outroísmo chicoteia você, dá porrada, põe você de castigo, te prende, difama, faz o diabo. E o desafio fica maior porque são as pessoas mais queridas que colocam seu SIM a prova. Sua família, seu pai, sua mãe, seu marido, seus filhos, etc.

PARTICIPANTE: Por isso a tendência é viver outroísta?

Exatamente. E quando o outro é autoísta, você dá porrada nele também. Você coloca ele de castigo, faz bico, fica de mal, deleta ele do seu Facebook, etc.

Você nasceu nesse mundo para destruir esse mundo. Está espantado? Tem mais! Você já está destruindo esse mundo sem dar um tiro sequer. Sua estratégia para destruir o mundo é mais infalível que a bomba atômica: é ser você.

O destino de toda semente é realizar a si mesma. O destino de uma coletividade de sementes é realizar uma nova safra. Você é uma semente da nova safra humana. Você, realizando a si próprio, sendo você mesmo, por simples e inevitável consequência, está destruindo esse velho mundo e produzindo um mundo novo. Por isso é tão transformador quando você se permite ser você, ímpar, singular, extraordinário.

Você não é estranho, estranho é uma coletividade escravizar, explorar, segregar, prejudicar e matar uns aos outros. E você ainda tenta se encaixar nesse mundo! Por isso que dói. Você não nasceu para se encaixar, você nasceu para tirar o ser humano de dentro da caixa. Entendeu? Ótimo! Prossiga!

Quando meu amigo Ricardo percebeu que seu coração pulsava feito bumbo de rock, redirecionou suas finanças para comprar discos. Por conta disso, se tornou frequentador do sebo do bairro. De tanto ir ao sebo, acabou arranjando um emprego lá. Ser pago para ouvir música e vender discos, foi o paraíso. Ricardo estava sentado no colo do seu destino, mas ainda não havia percebido. Tanto que, passado algum tempo, na expectativa de ficar rico, saiu do sebo e se tornou vendedor numa loja de instrumentos musicais.

Certa tarde, em que a loja estava vazia, um dos vendedores da loja ligou uma guitarra e começou a tocá-la. Ricardo sentou na bateria e tentou acompanhar a música. E conseguiu! Facilmente! Sem nenhum esforço! Para seu próprio espanto. Tanto que começou a brincar com o ritmo, fazendo variações e viradas.

Terminada a brincadeira, o guitarrista elogiou o talento do meu amigo e o convidou para tocar bateria na banda dele. Foi nesse momento que meu amigo encontrou seu destino. Ele podia até ficar rico trabalhando com vendas, porém, não podia mais alegar ignorância. Seu destino ficou óbvio, estava escorrendo em sua cara junto com o suor. “Além de ouvir música, posso fazer música também?” Ricardo pensou espantado.

Você pode tentar tapar o sol com a peneira, com chocolate, com sexo, com drogas, com roupas, com dinheiro, com aplausos, etc, mas, ironicamente, tudo isso só mantêm você afastado da sua missão: ser você. Quer ser um herói? Salve a si mesmo da uniformidade! Quer matar o vilão? Mate sua mentalidade uniformista! Sua fidelidade aos 10 mil mandamentos não faz de você um herói, faz de você inimigo de si. Desista da uniformidade! Dê um grito de liberdade agora mesmo! Ao fazer isso, aos olhos dos fiéis, você se tornará um traidor. Deixe que falem! Seja fiel a você. Cumpra sua missão.

Qual é sua prioridade?

( A ) ter dinheiro
( B ) ser rico
( C ) ser você

( A ) ter fama
( B ) ser famoso
( C ) ser você

( A ) ter amores
( B ) ser amado
( C ) ser você

( A ) ter medalhas
( B ) ser vencedor
( C ) ser você

( A ) ter barriga de tanquinho
( B ) ser bonito
( C ) ser você

( A ) ter escambau
( B ) ser escambau
( C ) ser você

A opção (C) não exclui a possibilidade das opções (A) e (B).
As opções (A) e (B) excluem a possibilidade da opção (C).

Vamos supor que seu objetivo seja ser rico. O que você prefere: ser rico ou ser você? Vamos supor que seu objetivo seja ser um profissional de sucesso. O que você prefere: ser um profissional de sucesso ou ser você? Vamos supor que seu objetivo seja ser um bom pai, ou uma boa mãe, ou um bom filho, ou um bom religioso, ou um bom cidadão, etc. O que você prefere: ser bom ou ser você?

É por isso que seu objetivo atrapalha seu objetivo. Você é uma semente que tem um único objetivo: autorrealização (ser você). Então, quando você opta por realizar qualquer outro objetivo em detrimento do seu objetivo de autorrealização, você bloqueia sua autorrealização.

“Quer dizer que eu não posso ser rico, ter sucesso profissional, ser um bom pai, uma boa mãe, um bom filho, um bom religioso, um bom cidadão, etc?”. Claro que pode! É apenas questão de prioridade. First things first. Primeiro ser, depois fazer.

Quando você dá prioridade a qualquer outro objetivo em detrimento de ser você, mesmo que você realize o objetivo, você é infeliz. É por isso, por exemplo, que pessoas ricas, profissionais de sucesso, bons pais, mães, filhos, religiosos e cidadãos tem depressão e até se suicidam.

De que adianta o homem ganhar o mundo e perder sua alma? É isso!

“No pain, no gain” é uma frase muito popular entre os marombeiros. Significa, “sem dor, sem ganho”. Só que os marombeiros não foram os primeiros a formular essa sabedoria. Fernando Pessoa, por exemplo, já havia observado essa sabedoria com as seguintes palavras: “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”.

Os portugueses não conheciam o Mapa Mundi. Ninguém conhecia. Não existia Mapa Mundi naquela época, mas ainda assim, os portugueses rasgaram os mares em precários navios de trinta metros e empurraram os limites do mundo e do homem até o Cabo do Não, nas costas do Senegal, que depois recebeu o nome de Cabo do Bojador. Muito longo e cercado por recifes, ali a neblina tampava a visão dos navegadores. Aqueles que passavam pelo Cabo do Não jamais voltavam. Muitos acreditavam que o mundo acabava depois do Cabo do Não e a neblina era o resultado da evaporação das águas que ferviam ao cair no inferno lá embaixo. Até que, em 1434, o navegador Gil Eanes disse sim para o Cabo do Não. Avançou e pronto! A terra e o homem não acabavam mais no Cabo do Não.

Fernando Pessoa fez uma analogia da autorrealização com a saga da navegação portuguesa. Bojador é uma metáfora para mediocridade. Para passar além da mediocridade, tem que passar além da dor. Óbvio! Suportar a dor é o alicerce da realização de qualquer tarefa e também da autorrealização. Você vive uma mentira porque não suporta a dor de ser rejeitado, a dor de ser criticado, a dor de ser maltratado, a dor de ser difamado, a dor de ser pressionado, etc. Você finge para fugir da dor. Seu lema é: fingir para fugir. Só que além de não conseguir fugir, sofre tentando e ainda vira escravo dos outros.

Certa vez, perguntaram ao filósofo Arthur Schopenhauer, qual é a opção mais sábia que um homem pode fazer na vida. Ele respondeu: “A opção mais sábia que um homem pode fazer na vida ele já não fez”. Schopenhauer se referia à opção de não nascer, uma vez que viver é se condenar a sofrer. Dizem que Schopenhauer foi pessimista, mas apenas disse o óbvio. Viver dói. Dói muito. Dói pra caralho. Dói para seres humanos, dói para bichos, dói para insetos, dói para frutas e legumes. A dor é inerente à experiência de viver. Nada escapa. Tentar fugir da dor só resulta em ampliação da mesma.

Realizadores não são seres humanos especiais nem imunes à dor, são seres humanos que não desistem de realizar o que querem apesar da dor. Realizadores preferem sentir a dor do fracasso à dor de sequer tentar. Preferem a dor do arrependimento à dor de não ter do que se arrepender. Realizadores se bancam e pagam o preço. O mesmo fazem os seres humanos que persistem na autorrealização. Claro que é mais fácil seguir a uniformidade do que seguir a própria consciência. Claro que é mais fácil copiar e colar do que escrever a própria história. O fingimento evita a dor do desprezo, da crítica, da rejeição, da censura e faz você ganhar joinha, beijo, palminha e coração. Só que não tem dor maior do que viver em autonegação.

Então, escolha seu prazer e sua dor.

PERGUNTAS

O inútil prazer de ser você não é sensação de ser inútil, é sensação de ser você, ser o que se é. Quando você se permite isso, você experimenta o prazer da autorrealização. Esse prazer é inexplicável. Palavras não fazem juz a ele. Mas para te dar uma palavra, o inútil prazer de ser você é o prazer da plenitude. Lembre de um momento em que você se sentiu ótima, excelente, completamente em paz e encaixada em si. Plenitude é mais ou menos assim. Mas não serve para nada. Só serve para você sentir. Então, é um prazer inútil, com fim em si. Aliás, como todo prazer.

A tão perseguida felicidade é o inútil prazer de ser você.

Considere que você está brincando de destino inconsciente, então, você não tem como saber quem você é. Você só consegue sentir. Ruim é sentimento, não é saber. Então, quando você se sente mal com seu comportamento, é justamente porque você não está sendo você mesma, pois quando você está, você se sente bem.

Existir não serve para nada. Não tem utilidade nenhuma. É absolutamente inútil. Existir é apenas a natureza dos seres. Seres existem. Só isso. Por que existem? Porque ser é existir.

Porque você não suporta a dor da rejeição. Seu viver autoísta desagrada o outro e o outro te rejeita. Para evitar a rejeição do outro, você opta pelo viver outroísta.

Porque é impossível saber sabendo, só é possível saber sentindo.

Vocação significa voz, chamado. Sua vocação é ser você. Seguir sua vocação é seguir a voz interior que chama você para ser você. Sua voz interior é seu sentimento. Sentimento não é racional, é irracional. Então, para seguir sua vocação, você precisa colocar o racional a serviço do irracional. Essa é a dificuldade.

Você foi ensinado a fazer o oposto e tem feito o oposto sua vida inteira. Você acorda deprimido, se sentindo péssimo, mas quando alguém te pergunta como você está, você responde “está tudo bem”. Você discorda de algo, acha que está errado, mas reprime o sentimento e faz o errado, mesmo a contra gosto.

Seus educadores não lhe educaram para seguir seu coração e ser único, singular, impar, eles lhe educaram para se encaixar no gabarito da normalidade. O resultado disso, é que você perdeu completamente a habilidade de seguir seu coração, seguir sua voz interior, seguir sua vocação. E pior! Você quer encontrar sua vocação, mas acha um absurdo seguir seu sentimento.

Vocação não se encontra, vocação se vive. E para viver sua vocação, o único jeito é fazendo o racional se render ao irracional (sentimento). Antes dessa rendição, é impossível viver a vocação. Então, se quer viver sua vocação, renda-se! Coloque seu racional de joelhos diante do seu sentimento e diga amém.

Autorealização é a diversão dos seres. Você (sem forma) brinca de ser você (com forma). O universo é o playground dos seres.

Já senti. Atualmente não sinto mais. Na juventude, por exemplo, minha mãe entrava no quarto quando estava tocando violão e pedia para eu ir ao banco. Eu dizia que ia depois, pois estava tocando violão. Ela ficava irritada, me chamava de vagabundo e dizia que a vida não era feita só de tocar violão. Eu me sentia um inútil e ia ao banco. Duas horas em pé na fila, sem fazer absolutamente nada, só para não ser considerado vagabundo. Quando voltava para casa, antes de entrar no quarto, minha mãe já tinha outra coisa útil para eu fazer, muito mais útil que tocar violão. E assim por diante. Até que adquiri autonomia financeira, afetiva e intelectual. Hoje em dia a mentalidade utilitarista não me pega mais. Se pegasse, não estava há 12 anos trabalhando de graça na 1ficina.

Não tenho certeza nenhuma sobre nada em relação ao outro. Eu sinto o inútil prazer de ser eu, então, suponho que todos os seres possam sentir, pois seria injusto alguns seres sentirem e outros não.

AULAS

FRASES

© 2023 • 1FICINA • Marcelo Ferrari