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Faz 20 anos que trabalho com o sofrimento humano e não tenho dúvida de que a ignorância do funcionamento do afeto e a incompetência em lidar com ele, é a fonte mais recorrente do sofrimento humano. Recentemente uma aluna veio conversar comigo sobre seu narcisismo, ou seja, sobre o lido com o afeto. Gosto da lucidez de Freud para explicar o funcionamento psicológico humano, mas não gosto da terminologia psicanalítica. Acho desnecessariamente erudita, quase clerical. Acho que é uma carranca que afasta as pessoas do estudo da psicologia ao invés de aproximá-las. Enfim, não gosto da palavra “narcisismo”. Poderia ser substituída por “vaidade”, por exemplo. Porém, sei que narcisismo é mais do que vaidade. Então, pensando no assunto, fiquei procurando uma palavra substituta. Pensei nisso uma manhã inteira. Não encontrei a palavra ideal, mas tive uma eureka sobre o sofrimento afetivo que me levou a entendê-lo como nunca havia pensado antes. Essa eureka não poderia ter me ocorrido antes, pois está apoiada no entendimento de tudo que já expliquei nos livros anteriores da 1ficina. O título dessa eureka é o título do livro: homem vertical. Espero que a explicação do homem vertical seja tão útil para você como acredito que será. Boa leitura! E muitas eurekas!
— A humanidade é um lixo! — diz a voz agressiva e convicta.
Olho para trás a fim de reconhecer o autor e tentar entender o motivo.
— A humanidade é um lixo! — ele repete.
Investigo o dono da frase de cima a baixo. Sua pele é encardida. Usa um bigode de bangue-bangue totalmente fora do horário nobre. Veste um pijama estampado de sujeira. Calça as mesmas havaianas das top models, mas desfila sem nenhum charme.
— A humanidade é um lixo! — ele diz novamente.
O sujeito sujo está ao lado de um camelô que vende café da manhã por um real. Bolo e chocolate quente. Não está pedindo comida. Está olhando para uma mulher que parou ali.
— A humanidade é um lixo! — ele insiste, olhando para mulher.
A mulher permanece tranquila, não o recrimina. Frustrado com a falta de reação da mulher, ele direciona sua afirmação para o camelô.
— A humanidade é um lixo e eu tenho pavor de mulher!
O camelô faz cara de poisé. O sujeito sujo volta a falar para mulher.
— A humanidade é um lixo e eu tenho pavor de mulher!
A frase é o refrão de uma ferida aberta. Talvez a mulher sinta a mesma dor. Talvez o que está saindo da ferida dele, entra na ferida dela como uma transfusão de traumas, como um abraço de duas pessoas sem braços.
Mas por que o camelô não dá logo um fim no sujeito que está espantando a freguesia? Por que a mulher não vai embora? Por que a humanidade é um lixo? Por que parte de mim concorda? Por que outra parte discorda? E pior! Por que o sinal abriu e eu continuo assistindo a cena?
— A humanidade é um lixo! — ele persiste.
A mulher esfrega as pálpebras. O camelô retira um guardanapo de papel do saquinho de supermercado e entrega para ela enxugar as lágrimas.
O sujeito sujo se cala. Talvez esteja com vontade de dizer algo, qualquer coisa, além daquela frase que já não faz mais sentido. Só que ele não sabe falar, só sabe gemer feito animal.
Então, o sujeito se aproxima do cesto de lixo, pega o guardanapo molhado de lágrimas que a mulher jogou ali, e põe na boca, feito hóstia.
A mulher abre um sorriso na contramão da rotina, passa os dedos úmidos na cabeça encardida do sujeito e desaparece dentro de um ônibus lotado.
A humanidade é um luxo! Eu penso.
Faça o download de um programa que você nunca usou, que não tem ideia de como funciona e tente usá-lo. O que irá acontecer? Você não conseguirá usá-lo. Tudo que fizer, não irá funcionar. Tudo que clicar, dará errado. Entrar na brincadeira humana é fazer o download da natureza humana e começar a usá-la. Só que a natureza humana é um programa que você nunca usou antes e não tem a mínima ideia de como funciona. Então, claro que você será um péssimo usuário da natureza humana.
Podemos olhar para violência, crueldade e maldade no mundo e concluir que a natureza humana é má, que é um lixo. Isso é um equívoco. A natureza humana é sensacional, super sofisticada. A natureza humana é um luxo. Eis a dificuldade. Se a natureza humana fosse simplória como a natureza de um repolho, você-ser, usuário dela, aprenderia rápido como usá-la e o resultado seria bem viver e boa convivência.
O homem pode ser vertical, o repolho não pode. Falta sofisticação na natureza do repolho para que isso seja possível. Ou seja, você vive mal e convive mal por dois motivos: 1) Porque você entra na experiência humana absolutamente ignorante do seu funcionamento. 2) Porque ao tentar entender como a natureza humana funciona, você se depara com um sistema operacional super sofisticado e sem manual de instrução.
O sofrimento afetivo começa pela existência da afetividade. O que é afeto? Você não sabe. Você vive mergulhado na experiência afetiva, mas não sabe o que é afeto. Tem uma vaga ideia. O mais comum é pensar que afeto é amor, carinho, sentimento. Sim, tudo isso faz parte da experiência afetiva, mas em síntese, afeto não é isso.
Pense em tudo que você ama, tem apreço, tem sentimento bom e considera importante. Você irá perceber que tudo isso é valoroso para você. Pense em tudo que você odeia, que despreza, tem sentimento ruim e considera sem importância. Você irá perceber que tudo isso é sem valor para você. Afeto é valor.
Toda vez que você interage com o outro você experimenta as características desse outro. Essa experiência é o que você chama de percepção sensorial. Quando você come o pudim da sua mãe, por exemplo, você tem uma experiência sensorial que você chama de “doce”. Só que, simultaneamente a experiência sensorial, você tem uma experiência afetiva. Enquanto você está comendo o pudim, você sente que o pudim é especial, melhor pudim do mundo, pois foi sua mãe que fez.
“Melhor pudim do mundo” é afeto. O sabor doce do pudim vem do paladar, mas o valor de “melhor pudim do mundo” não vem do paladar, nem do cheiro, nem do tato, nem do olfato, nem da visão, vem da sua atribuição de valor, ou seja, vem do seu afeto. O pudim é apenas um pudim, nada além do que é: um pudim. Mas como o pudim foi feito pela sua mãe, para você, não é um pudim qualquer, é especial, é querido, é estimado, é valoroso, é o melhor pudim do mundo.
Se você me oferecer um pedaço do pudim da sua mãe e me perguntar: sentiu que é doce? Eu direi que sim. Se você me perguntar: sentiu que é o melhor pudim do mundo? Eu direi que não. Como isso é possível? Por que você tem uma experiência afetiva com o pudim e eu tenho outra? Simples! Sua mãe não é minha mãe, então, minha atribuição de valor é diferente da sua. Vamos supor que sua mãe foi minha professora na escola e sempre me deixava de castigo. Se você me disser que foi sua mãe que fez o pudim e me perguntar o que eu acho, eu direi: é o pior pudim do mundo.
O pudim da sua mãe é o melhor ou o pior pudim do mundo? Nem melhor, nem pior. O pudim é o pudim. O valor do pudim não vem da percepção sensorial do pudim, vem de atribuição de valor. E qual é a atribuição de valor correta? Não existe atribuição correta de valor, o que existe é atribuição particular. Cada um atribui um valor diferente ao pudim.
Se você perguntar para mil pessoas qual é o valor do pudim da sua mãe, você ouvirá mil valores diferentes. Nenhum valor será correto ou errado, cada valor será resultado do afeto de cada pessoa em relação a tudo que envolve a experiência com o pudim. Não existe um valor absoluto. Todo valor é relativo à pessoa que o está atribuindo. O pudim da sua mãe vale quanto pesa o afeto que cada pessoa tem por sua mãe e por pudins.
Você possui uma faculdade cognitiva que funciona igual um dicionário, possibilitando que você faça distinções de alteridade. Essa faculdade se chama intelectualidade. É graças a essa faculdade que você é capaz de distinguir as coisas. Quando você usa uma xícara ao invés de um penico para tomar chá, por exemplo, é sua intelectualidade que lhe diz o que é xícara e o que é penico, caso contrário, você tomaria chá em um penico.
Existe uma frase famosa que diz que o homem é a medida de todas as coisas. É verdade. Porém, é mais do que isso. Cada um é a medida de cada coisa. Tem aquele clássico meme de duas pessoas olhando para um número no chão. Uma pessoa vê o número 6 e a outra vê o número 9. Qual é o número correto: 6 ou 9? Ambos são corretos para cada um dos definidores, medidores, observadores.
Contudo, divergência de definições sobre objetos concretos (físicos) é incomum. Quase ninguém discorda, por exemplo, sobre o que é uma porta e o que é uma parede. Só que definições não se aplicam apenas a objetos concretos, se aplicam também a objetos abstratos, ou seja, conceitos. É aí que a relatividade aumenta, e muito.
Tomate, por exemplo, é legume ou fruta? Depende de como cada um define fruta e tomate. Uma definição é tipo uma caixinha. Quando o tomante se encaixa na sua caixinha de fruta, é fruta, caso contrário, é legume. Para outra pessoa que usa outra definição (outra caixinha), pode ser exatamente o oposto. E assim por diante: cada um é a medida de cada coisa.
Se vivêssemos conscientes de que cada um é a medida de cada coisa, viveríamos de forma respeitosa e universalista. Porém, cada um de nós vive sob o equívoco de que é dono da verdade. Temos a convicção absoluta: eu sou a medida de todas as coisas. Não temos consciência que vivemos assim, mas é assim que vivemos, tanto em ambientes eruditos como populares. Essa convicção individual de que minha verdade é absoluta é o narcisismo intelectual, fonte de metade dos conflitos e da violência entre os seres humanos. O vídeo abaixo monstra o narcisismo intelectual acontecendo entre dois bacharéis em zoologia.
Definir é aplicar um critério de sim ou não sobre algo. Tomate é fruta (sim) quando entra no critério de fruta. Quando não entra, não é fruta. É assim que a intelectualidade funciona: sim ou não, preto no branco, sem tons de cinza. Contudo, um tomate pode ser uma fruta ótima, boa, regular, ruim e péssima. De onde vem essa graduação qualitativa se intelectualidade é sim ou não? Vem da afetividade. Ótima, boa, média, ruim, péssima não são critérios intelectuais, são critérios afetivos, critérios de valor.
Afetividade é a régua vertical que você usa para dar valor a tudo. O que você valoriza mais, fica na parte de cima da sua régua, numa posição superior. O que você valoriza menos, fica na parte de baixo da sua régua, numa posição inferior. Sabe aquela clássica pergunta que os pais fazem as crianças: “Você gosta mais do papai ou da mamãe?”. Para responder, uma criança olha para sua régua afetiva a fim de ver o que está em cima e o que está embaixo. Se o papai está em cima e a mamãe está em baixo, a criança responde: eu gosto mais do papai. Se for o oposto, ela responde: eu gosto mais da mamãe. É fundamental ter uma régua afetiva para poder classificar as coisas como superiores ou inferiores, melhores e piores. Como você poderia dizer o que é mais valoroso sem comparar posições na sua régua de afetos? Não poderia. Seria impossível.
A coisa que mais fazemos na vida é ranquear as coisas. Dentro de cada ser humano existem réguas verticais (afetivas) para ranquear tudo. Réguas para melhores e piores comidas, roupas, músicas, cores de esmalte, jogadores de futebol, marcas de celular, filmes, etc. Duas pessoas podem até ter réguas afetivas semelhantes, mas igual, é impossível. E para toda régua existe uma sub-régua, o que torna tudo mais complexo e discordante. Por exemplo, você pode concordar com alguém que café é a melhor bebida no racking das bebidas. Mas tem o sub-ranking de bebidas de festa. Nesse caso, a melhor bebida pode ser a cerveja e não o café. E assim por diante. Existem aproximadamente 8 bilhões de seres humanos no planeta, então, somos 8 bilhões de homens verticais, uns diferentes dos outros.
Diz o ditado que gosto não se discute. Esse conselho popular visa evitar brigas. Mas não tem problema nenhum conversarmos sobre nossos diferentes critérios afetivos (critérios de valor). Pelo contrário, é recomendável e saudável. O problema é quando queremos estabelecer o nosso critério de valor como o único critério de valor do universo. Cada ser humano é uma régua vertical (afetiva) diferente do outro. Porém, vivemos sob a seguinte convicção: eu sei o que é melhor para todos. Ou seja, cada ser humano acredita que é a régua absoluta. Esse equívoco é o narcisismo afetivo, fonte da outra metade dos conflitos e da violência entre os seres humanos.
Você usa sua intelectualidade para definir tudo, inclusive você. Quando alguém te pergunta: quem é você? Sua resposta é sua autodefinição. Você diz: “Eu sou Fulano, brasileiro, casado, advogado, etc”. Você pode aprofundar na sua autodefinição, dizendo: “Eu sou uma pessoa curiosa, paciente, sincera, etc”. Tudo que você pensa sobre si faz parte desse dicionário escrito “eu” na capa. Toda vez que alguém afirma algo sobre você, você abre seu dicionário identitário e verifica se a afirmação está correta. Por exemplo, se você se considera uma pessoa discreta e alguém diz que você é fofoqueiro, você conclui que a pessoa está errada. Sem um dicionário identitário seria impossível você concordar ou discordar de qualquer afirmação feita sobre você.
Cada pessoa tem uma definição diferente sobre você e vice-versa. Sendo assim, é muito comum que a definição de alguém sobre você seja diferente da sua e vice versa. Até aí tudo bem. Sem problemas. Pessoas diferentes tem definições diferentes uma das outras. Porém, devido ao narcisismo intelectual, todas acreditam que suas definições são absolutas. É aí que começa a luta do convencimento.
Por exemplo, se você se considera uma pessoa discreta e alguém diz que você é fofoqueiro, devido seu narcisismo intelectual, você tentará convencer seu interlocutor que você é uma pessoa discreta. Porém, como seu interlocutor também é narcisista intelectual, ele irá discordar e tentar te convencer do oposto, que você é fofoqueiro. E assim segue a luta do convencimento, que se só serve para produzir estresse, inimizade, conflito e mal viver.
Como se libertar da luta do convencimento? Simples! Dando ao outro a liberdade de ter uma definição sobre você diferente da sua. Qual é o problema do outro acreditar que você é uma pessoa que você não é? Se você não é algo, não precisa convencer o outro de que ele está equivocado. A responsabilidade de sair desse equívoco é do outro e não sua. Abandone essa responsabilidade que não é sua e você se liberta dela.
Você usa sua régua vertical (afetiva) para ranquear tudo, inclusive você. Por exemplo, se considerar bonito, inteligente ou bem-sucedido, é se superestimar, ou seja, se ranquear como superior aos feios, burros e fracassados. Se considerar feio, burro ou fracassado, é se subestimar, ou seja, se ranquear como inferior aos bonitos, inteligentes e bem-sucedidos.
Cada pessoa tem um ranking completo e diferente sobre você e vice-versa. Uma pessoa pode considerar você, feio, gordo, engraçado, bom amigo, péssimo jogador de baralho, bom pai, etc. Outra pessoa pode considerar você bonito, gordinho, sem graça, péssimo amigo, ótimo pai, etc. Você faz o mesmo com todas as pessoas.
Até aí tudo bem. Sem problemas. Pessoas diferentes tem avaliações diferentes uma das outras. Porém, devido ao narcisismo afetivo, todas acreditam que suas avaliações são absolutas. É aí que começa o problema da gangorra narcísica.
Você, assim como todo ser humano, quer ser valoroso, ou seja, quer ser superior. Então, quando alguém te subestima, é como se você e essa pessoa estivessem brincando de gangorra e ela te colocasse para baixo para ficar por cima. Esse tipo de interação faz você se sentir inferiorizado. Para sair do sentimento de inferioridade, você precisa subir na gangorra. Para subir, você precisa reverter a avaliação inferiorizante do outro. Para reverter, você faz com o outro o mesmo que ele fez com você: subestima ele.
Essa brincadeira de gangorra narcísica acontece por infinitas estratégias de subestima. Ironia, xingamento, maledicência, desprezo, humilhação, porrada, etc. Independente de qual estratégia é usada, a brincadeira é a mesma, o objetivo é o mesmo, e o resultado também é o mesmo: estresse, inimizade, conflito e mal viver.
Como se libertar da gangorra narcísica? Simples! Dando ao outro a liberdade de se considerar melhor do que você. Qual é o problema do outro te subestimar e se considerar superior a você? Em que isso altera sua realidade? Se você se considera magro e o outro te considera gordo, em que isso altera seu peso? Se você se considera inteligente e o outro te considera burro, em que isso altera seu cérebro? Se você se considera bonito e o outro te considera feio, em que isso altera sua fisionomia?
Responder essas perguntas faz você perceber como é inútil e improdutivo brincar de gangorra narcísica. É isso mesmo! Só serve para manter você preso ao mal viver. Desista agora mesmo dessa brincadeira vertical e venha brincar na horizontal, onde ninguém é superior ou inferior, cada um é o que é.
O universo disse “Faça-se!” e o patinho foi ÍMPARfeito.
— Que patinho defeituoso!
— Defeituoso é pouco!
— Olha como anda errado!
— Ele vai nos estragar também!
E todo dia o patinho era maltratado. Então, cansado de ser maltratado, o patinho resolveu ir embora do mundo. Depois de muito caminhar, chegou em um lago. Ao aproximar-se do lago, viu uma imagem na água. Sem entender que era seu reflexo, começou a conversar com a imagem na água.
— Por que sofro tanto?
— Boa pergunta, por que está sofrendo?
— Porque sou imperfeito.
— Quem disse?
— Todos dizem! O mundo diz!
— E você acredita?
— Claro que acredito.
— Por que acredita?
— Porque todos dizem.
— E como você gostaria de ser?
— Gostaria de ser perfeito.
— Perfeito como?
— Perfeito igual os outros.
— Mas cada um é diferente!
— Sim, é verdade!
— E por que quer ser igual os outros?
— Para que me aceitem.
— Ninguém te aceita?
— Não como sou, imperfeito.
— Quer ser perfeito para ser aceito?
— Sim, quero ser aceito.
— Eu te aceito!
— Você me aceita como sou?
— Exatamente como é.
— Aceita minhas imperfeições?
— Sim, são suas imperfeições que te fazem ser você.
— Nossa! É verdade!
— Você é além de perfeito!
— Como assim?
— Você é ímpar feito.
— É verdade! Meu sofrimento até passou!
— E não precisa voltar mais.
— Grato por me aceitar.
— O prazer é todo meu.
— Posso te abraçar?
— Claro, aproxime-se.
O patinho foi se aproximando até mergulhar em si mesmo. Quando voltou à superfície, estava ÍMPARfeito.
Santo Antão queria ser santo. Para tanto, passou a vida dentro de uma caverna, jejuando e sendo atacado pelo demônio. Quando Antão rezava, o demônio vinha lhe distrair. Quando Antão olhava para o crucifixo, ao invés de Cristo, o demônio fazia ele ver uma mulher nua. Quando Antão estava fazendo jejum, o demônio preparava um banquete com as mais deliciosas comidas.
Mas Antão foi fiel. Resistiu a tudo. Então, quando Antão estava próximo de completar 105 anos, o demônio desistiu e disse: “Você me venceu, Antão! Pela primeira vez encontrei um homem mais forte que eu”. O demônio virou as costas e começou a sair da caverna. Antão caiu de joelhos e disse: “Finalmente, senhor, agora me tornei um santo”. O demônio sorriu e voltou.
Tem pessoas que contam essa história dizendo que Antão resistiu a todas as tentações menos a vaidade. Não discordo, mas acho pouco. Usar a palavra vaidade como crime, bater o martelo e encerrar o assunto, é jogar fora o bebê junto com a água suja do banho. Afinal, ser vaidoso do próprio desenvolvimento, não é crime, nem faz mal a ninguém. Para mim, o verdadeiro pecado de Santo Antão, foi a outro-estima.
Preciso explicar esse termo para que você me entenda. Auto-estima é quando seu valor próprio está baseado em sua própria atribuição, logo, independe da atribuição do outro. Outro-estima é o oposto, é quando seu valor próprio é baseado na atribuição do outro. Por exemplo. Se considerar um péssimo jogador por atribuição própria é auto-estima. Se considerar um ótimo jogador por atribuição do outro é outro-estima.
Auto-estima e outro-estima não diz respeito a qualidade da sua avaliação de valor, diz respeito a fonte da avaliação. Quando a fonte é você mesmo, seja a qualidade ótima ou péssima, é auto-estima. Quando a fonte é o outro, seja a qualidade ótima ou péssima, é outro-estima.
Quando digo que o pecado de Santo Antão foi outro-estima, estou me referindo a fonte da sua estima. Ele não resistiu as tentações para vencer o demônio e provar sua determinação a si mesmo (auto-estima), mas para mostrar para Deus que ele merecia seu apreço, que merecia ser considerado santo (outro-estima). Santo Antão passou 105 anos tentando comprar o amor de Deus.
Quando terminou o sexto episódio da minissérie Bebê Rena, depois que o protagonista confessou todos seus pecados chorando em um palco de stand up comedy, eu pensei: “Pronto, terminou! Por que será que tem um sétimo episódio?”. E a resposta era, porque o demônio da outro-estima e muito mais traiçoeiro, ardiloso e sútil do que qualquer Santo Antão possa imaginar.
Clique aqui para assistir o seriado Bebê Rena na NetflixSeu pai não fez por mal, fez por ignorância. Seu avô fez com seu pai, então, ele repetiu com você. Seu avô também não fez por mal, também fez por ignorância. Seu bisavô fez com seu avô, então, ele repetiu com seu pai, que repetiu com você. Seu bisavô também não fez por mal, também fez por ignorância. Seu tataravô fez com seu bisavô, então, ele repetiu com seu avô, que repetiu com seu pai, que repetiu com você. E assim por diante, ou melhor, assim por antes. Mas o que está feito está feito. O que você pode fazer agora é entender o feito e decidir se deseja continuar fazendo.
Mas o que foi feito? Seu pai lhe disse: “homem que é homem”. E não apenas disse, declarou com tom barítono, soturno e convicção que só um homem que é homem é capaz de ter. E o que você fez? Você acreditou. Afinal, sua autoridade tinha no máximo três centímetros, duro, enquanto que a autoridade do seu conselheiro era pelo menos três vezes maior que a sua, e se não fosse, você nem tinha nascido. Que outra opção você tinha? Você fez o que seu pai, seu avô, seu bisavô e todos seus ancestrais alfa fizeram: você acreditou.
Daí fodeu! Daí você virou coroinha da tradição, família e ancestralidade. Daí você deixou de ser um homem e se transformou num bosta. Afinal, você não tinha nenhuma das qualificações necessária para ser um homem que é homem. Você podia vir a ter as devidas qualificações e assim vir a ser um homem que é homem, porém, com uma autoridade de três centímetros, sem RG, CPF, cartão Gold e opinião crítica sobre o governo do PSPT, você nem podia ser chamado de bosta, você era um bostinha.
Mas nem tudo era espinhos. O tempo estava a seu favor. Você pensou: “Sou um bosta, mas ninguém nasce homem que é homem, meu pai também nasceu bostinha, logo, só preciso descobrir quais são as qualificações que transformam um bosta em um homem que é homem, praticar, assimilar e pronto!”. Seu raciocínio foi hierarquicamente perfeito! Foi exatamente isso que todos seus ancestrais pensaram e concluíram. Você deu o primeiro passo. Fez a matrícula. O segundo passo era descobrir o que era um homem que é homem.
“Pai, o que é um homem que é homem?”, você perguntou. Embora a resposta fosse automática e a pergunta fosse aguardada, por um instante seu pai hesitou. Ele previu seu futuro inteiro, pois seria exatamente a repetição do passado dele: uma bosta pintada de homem que é homem. Mas daí ele pensou: “A vida do meu filho não pode ser uma bosta que nem a minha!!!”. E foi assim que seu pai começou com a ladainha: “Homem que é homem isso, aquilo, murilo, grilo, crocodilo, esquilo, etc”.
Se ignorância é uma benção, sinta-se desabençoado. Depois dessa reflexão, você pode até continuar seguindo a tradição, família e ancestralidade, mas não pode mais alegar ignorância. Se você é mulher, é só trocar “pai” por “mãe”, “bosta” por “tonta” e “homem que é homem” por “mulher que é mulher”, depois aplicar a mesma lógica e destino. Agora, se você é um bosta ou uma tonta, parabéns: você é uma benção.
Nem melhor, nem pior, você é diferente. Nem melhor, nem pior, o outro é diferente. Quando você e o outro se esquecerem disso, cante o mantra da imparfeição: “Eu não nasci / para satisfazer / as suas expectativas / perdão / E não adianta / você partir / pro ataque ou pra defensiva / perdão / Eu sou / o que sou / como tudo que é existente / nem melhor / nem pior / diferente”.
Sim, afetividade tem a ver com o pensamento qualitativo e intelectualidade tem a ver com o pensamento quantitativo. Essa explicação está detalhada no livro Casa Da Razão Humana.
Tanto a competência intelectual como a competência afetiva se desenvolve pensando. São dois jeitos de pensar diferentes. Intelectual é o que define. Você desenvolve o intelectual pensando O QUE. O que é isso? Afetivo é valor. Você desenvolve o afetivo pensando PORQUÊ. Qual a importância disso?
Sim, constrangimento é emoção. É sentir que você não tem valor. A dimensão do valor é a dimensão afetiva.
Uma ideologia é uma verdade, então, é uma questão intelectual. A importância que se dá a uma ideologia, é valor, então, é uma questão afetiva.
Exatamente por serem dimensões diferentes do quaternário humano. Quando você diz, “amor é um sentimento”, você está dizendo o que é o amor. Quando você diz “eu te amo”, você está dizendo que algo é valoroso para você. Definição rotula, dá nome ao sentimento. O amor que você sente por algo ou alguém é o tanto que você valoriza esse algo ou alguém.
Um náufrago estava caminhando por uma ilha deserta quando viu uma pessoa se afogando no mar. O náufrago se jogou na água, salvou a pessoa e a levou para ilha. Chegando na ilha, descobriu que a pessoa era a Sharon Stone. Muito agradecida, Sharon Stone disse ao náufrago para pedir o que quisesse em retribuição ao salvamento. O náufrago não hesitou e disse: “Quero fazer sexo com você!”.
Durante dois mês eles transaram todos os dias e o náufrago ficou muito feliz. No terceiro mês o náufrago começou a ficar deprimido. Sharon Stone percebeu e perguntou se podia fazer algo mais para deixá-lo feliz. Sem hesitar, o náufrago pegou um velho baú de roupas e vestiu a Sharon Stone de paletó e gravata. Depois disse: “Faz de conta que estamos na civilização e você é meu colega de trabalho. Eu vou ficar parado aqui como se estivesse no elevador lotado. Você chega e me cumprimenta”.
Sharon Stone achou estranho, mas concordou. Ela entrou no elevador fictício vestida de homem e disse: “Olá, tudo bem com você?”. E o náufrago respondeu entusiasmado: “Raaaaapaaaaz, você não vai acreditar com quem estou transando!”.
Entendeu o fundamento da treta? Por isso você jamais recebeu e jamais receberá uma mensagem no privativo dizendo que tem pinto pequeno ou que é gorda balofa. Glorificação e difamação só funcionam quando tem plateia. Quem joga flores ou tomate é o público. Difamação privada vai direto para privada. Não tem poder nenhum. Difamação só funciona quando é feita na rede globo em horário nobre. Difamação privada não é difamação, é conversa. Você envia uma mensagem descrevendo o desafeto com a intenção de conversar e resolvê-lo, não de piorá-lo.
Porque afeto é valor. Quando uma pessoa tem muito valor para você, essa pessoa é cara para você. Já ouviu alguém falando “meu caro, fulano”. Caro é sinônimo de querido, que é sinônimo de afeto. Uma coisa que não tem valor, uma coisa sem importância, é nula. Por isso, no amor afetivo você deseja o caro e não deseja o nulo.