Tudo começa por você. Sem você não tem nada (para você). Pense em tudo que você diz que existe: universo, estrelas, planetas, terra, chão, água, pessoas, familiares, amigos, árvores, cadeiras, copos, colheres, xícaras, etc. Sem você, cadê tudo isso?
Imagine que você tem uma filha. Imagine que sua filha ainda não está grávida. Imagine que no período de dois anos sua filha irá engravidar e dar à luz a um menino chamado Eugênio. Eugênio não é nem um embrião ainda, nem foi concebido, mas será. Tudo que você diz que existe, existe para Eugênio?
Tudo começa pelo EU, porque sem o EU (conhecedor) nada do que pode ser conhecido tem como ser conhecido. É impossível conhecimento sem conhecedor. Por isso todo conhecimento é autoconhecimento: porque é impossível o conhecimento sem conhecedor.
O EU começa pela ALTERIDADE. O EU começa pelo NÃO-EU. OUTRO é a palavra que usamos para dizer: aquilo que não sou eu. Sem a alteridade EU E OUTRO, não tem nem eu, nem outro. Onde não tem OUTRO não tem EU. Onde não tem EU não tem OUTRO. O EU começa pelo OUTRO, o OUTRO começa pelo EU.
A história do nascimento do eu é a história do nascimento do outro em mim. Antes do meu nascimento, o outro não existe para mim. Antes do outro existir para mim, eu também não existo para mim. Eu passo a existir para mim quando tomo consciência do outro, quando tomo consciência do que não sou eu.
Qual é o momento que EU saio da existência absoluta (sem alteridade) e entro na alteridade?
Esse momento é o meu nascimento. Antes do nascimento não tem outro. Antes do nascimento só tem EU absoluto no útero, sem sequer saber que eu existo, porque não existe outro para haver alteridade e, consequentemente, consciência individual.
Antes do nascimento eu sou Adão no paraíso. Antes do nascimento nem Deus existe, porque Deus é outro. Antes do nascimento eu sou absoluto, porque não existe outro.
Só que o nascimento acontece. EU saio do útero, onde era absoluto, e entro na experiência da alteridade. O tapa na bunda que recebo do médico é para que fique consciente o mais rápido possível disso.
Eu me achava absoluto, mas estou prestes a descobrir que sou apenas um entre 8 bilhões de outros. E isso só considerando os seres humanos e o planeta Terra.
Essa é a primeira ferida narcísica: eu não sou absoluto.
Minha existência não é absoluta. Mas ainda não estou consciente disso. Vou ter que descobrir isso através da experiência empírica que estou tendo. Ninguém vai me ensinar. Não tem professor e não tem escola para conscientização da alteridade. Mesmo sendo um neném, vou ter que ficar consciente da alteridade por conta própria.
Preciso despertar a consciência para a alteridade ou morro. É uma questão de sobrevivência. Então, mesmo sendo um neném, mesmo sem guru, mesmo sem religião, mesmo sem livro de filosofia ou autoajuda e imerso na mais profunda ignorância, preciso responder à pergunta mais fundamental e enigmática de todas.
Que pergunta é essa?
A pergunta fundamental é: “Quem sou eu?”.
Como EU, neném, respondo à pergunta: quem sou eu? Como EU, neném, fico consciente da alteridade?
Através da convivência. Sem convivência é impossível ficar consciente da alteridade (eu e outro).
De que forma a interação com o outro me leva a ficar consciente da alteridade? O que acontece na convivência que me leva a conscientização da alteridade?
Acontece a experiência de sentir.
Quando eu mordo meu dedo, por exemplo, eu sinto dor, quando eu mordo o dedo da minha mãe, eu não sinto dor nenhuma. Eu sinto outras sensações também. Quando me esfrego, sinto a sensação de me esfregar, quando esfrego meu ursinho, não sinto que estou me esfregando. Resumindo, tudo que faço em mim, eu sinto. Isso me leva ao seguinte entendimento de alteridade:
1) O que não sinto, não sou eu, é outro.
2) Eu sou quem está sentindo o que estou sentindo.
Um homem chega no hospital com sua esposa. Ela está em trabalho de parto. As enfermeiras colocam a mulher em uma maca e o médico vem conversar com o marido. O médico explica ao marido que o hospital tem um novo procedimento de parto compartilhado. Através de um aparelho o pai sente as dores do parto da mãe. O homem, para mostrar que é macho, aceita o procedimento e o parto começa.
O médico liga o aparelho em 10% de dor. O homem permanece tranquilo, sem nenhum sinal de dor. O médico aumenta para 20%. O homem continua tranquilo, sem sinal de dor. O médico aumenta para 50% e nenhum sinal de dor. O médico aumenta para 100%. O homem não sente nenhuma dor. Quando o casal volta para casa, encontra o carteiro desmaiado na frente da porta.
Essa piada ilustra a mesma descoberta que faço quando neném:
1) O que não sinto, não sou eu, é outro.
2) Eu sou quem está sentindo o que estou sentindo.
Pense em soldados na guerra. Cada um em sua trincheira defendendo sua pátria, que no fundo, é cada um defendendo sua individualidade. Esses soldados estão atirando um nos outros. Imagine que cada bala que atingisse o inimigo doesse no corpo do próprio atirador. Você acha que haveria guerra no mundo? Claro que não! Mas, de fato, um não sente a dor do outro.
Tem uma segunda descoberta que me faz entender que não sou absoluto. Tem uma segunda ferida narcísica. E essa é a pior de todas. Se trata de uma ferida tão dolorida e tão inconveniente que eu tento ignorá-la até hoje. A convivência me mostra repetidas vezes que estou equivocado, mas ainda assim eu reluto em me conscientizar desse equívoco. Que ferida narcísica é essa?
Minha vontade não é absoluta.
E como descubro isso?
Quando estava no útero a alimentação era contínua, sem intervalo, eu não chegava sequer a sentir fome ou sede. Agora, além de sentir sede e fome, eu desejo o seio da minha mãe, mas minha mãe não satisfaz meu desejo só porque eu quero.
Para meu mais absoluto espanto, sou obrigado a ficar consciente que minha mãe tem vontade própria e que minha vontade não é absoluta. Tem minha vontade e tem a vontade do outro. E por enquanto está tranquilo, porque só tem duas vontades: a minha e a da minha mãe. Imagina quando eu descobrir que são 8 bilhões de vontades independentes andando pelo mundo.
Sendo que minha vontade não é absoluta, tem um problema. Qual?
Se o outro não me der o que quero, eu morro. Só que o outro tem vontade própria. Então, preciso fazer alguma coisa a respeito disso.
Eu não posso permitir que o outro viva de acordo com a vontade dele. Eu tenho que fazer o outro viver de acordo com a minha vontade. Realizar minha vontade tem que ser a prioridade do outro. Realizar minha vontade tem que ser responsabilidade máxima do outro.
Como impedir que o outro viva em acordo com a vontade dele e passe a viver em acordo com a minha vontade?
Como impedir que o outro viva em acordo com a vontade dele e passe a viver em acordo com a minha vontade?
Controlando o outro.
Eis, então, que por uma questão de sobrevivência, vou passar o resto da vida desenvolvendo e aprimorando duas estratégias de controle:
Outroísmo impositivo e outroísmo submisso.
O motivo de estudar ambos é ficar consciente dos malefícios dessas duas estratégias de convivência. O motivo da conscientização é possibilitar a mudança para uma estratégia de convivência melhor: o autoísmo.