Tenho 10 anos de idade. Estou dormindo. De repente, começo a sentir muito calor. Acordo. Percebo que o ventilador está desligado. Me levanto. Vou apalpando a parede até chegar no interruptor. Aperto o interruptor, mas a luz não acende. Está sem energia.
Decido ir até o quarto dos meus pais. Chego na porta do quarto e chamo: “Paaaaai! Mãaaae!”. Ninguém responde. Chamo mais forte. Ninguém responde. Vou andando no escuro até a cama dos meus pais. Apalpo a cama até encontrar seus corpos, mas não encontro nada. A cama está vazia.
Meu coração dispara.
Vou até o quarto da minha irmã para avisar que nossos pais saíram. A cama da minha irmã também está vazia.
Meu coração acelera mais. Todo mundo sumiu! Cadê todo mundo? Estou sozinho. Me deixaram sozinho. Não quero ficar sozinho dentro dessa casa escura.
Me lembro de uma conversa sobre um baile no clube. “Eles devem ter ir ao clube e me deixaram aqui”.
Sinto raiva dos meus pais, muita raiva. Como saem assim no meio da noite e me deixam sozinho? Que tipo de pai faz isso com um filho?
Sinto pavor de ficar sozinho, abandonado naquela casa vazia e escura. Procuro a chave do portão da cozinha que dá para rua. Quero sair de casa. Quero sair correndo na rua. Vou procurar meus pais na rua. Sei lá!
Mas cadê as chaves do portão! Não estão no chaveiro como de costume. Procuro por todo canto e não encontro. Minha raiva se multiplica. Além de me deixarem sozinho, levaram as chaves e me deixaram trancado, feito um prisioneiro.
Fico enfurecido. Quero sair de casa de qualquer jeito.
Penso em sair pela janela da sala, mas também está com cadeado. Talvez encontre as chaves do cadeado da janela. Começo a procurar enlouquecido de raiva. Encontro um molho de chaves. Não tem a chave da janela da sala, mas tem a chave da porta da sala.
Só que o sofá está encostado na porta da sala e o sofá é muito pesado. Me enfio por trás do sofá e fico entre o sofá e a parede. Encostado na parede, vou empurrando o sofá. Aos poucos o sofá vai se deslocando. Quando o sofá descola o suficiente da porta, abro a porta e saio pra rua.
Sinto um alívio enorme ao chegar na rua. Está de noite e a rua está completamente vazia. Nem carro passa. Mas as luzes dos postes estão acesas. Estou aliviado de ter saído de casa, mas ainda estou fritando de raiva de ter sido abandonado e trancado dentro de casa.
Me sento no asfalto, debaixo da luz de um poste e fico cultivando minha raiva. “Uma hora eles vão chegar e eles vão ver! Como que faz uma coisa dessas: trancar um filho dentro de casa e sair! Tá errado isso! Não pode! Tá errado!”
Passa muito tempo e nunca que meus pais chegam.
De repente, surge um farol de carro na rua. Fico contente. São eles. O carro se aproxima e passa por mim. Não eram meus pais.
A raiva que já tinha abaixado um pouco, volta a aumentar. “Será que não vão voltar nunca? Será que não se lembram que deixaram o filho trancado dentro de casa?”
Outro farol de carro vem pela rua. “Se não for eles dessa vez, eu vou andando até o clube e vou procurar eles lá”, penso. A luz do farol vai aumentando e a velocidade do carro vai diminuindo até parar de frente a garagem de casa.
Meu pai está dirigindo, minha mãe está no banco do passageiro e minha irmã está no banco de trás.
Minha raiva é tanta que começo a chorar de raiva. Estou uma pilha de nervos. Começo a gritar: “Vocês me deixaram em casa sozinho e trancado! Vocês me deixaram em casa sozinho e trancado! Vocês me deixaram em casa sozinho e trancado!”
Meu pai estaciona o carro e vem tentar me acalmar. Minha mãe abre o portão da cozinha e percebe que a casa está sem luz.
Entramos, minha mãe me dá água com açúcar e depois de todos os preparativos, nos deitamos para dormir.
Estou exausto de tanto chorar e sentir raiva.
Deito e durmo.
Esse texto foi escrito de forma didática e faz parte do primeiro passo de uma prática de autoanalise chamada: Diário Da Consciência. Clique no áudio abaixo para ouvir a prática inteira.