40 | EU CLAMO NO DESERTO

26/09/2022 by in category Mayasang with 0 and 0

Esbarrei na pequenina estátua do Buda e ela caiu no chão do meu apartamento. A cabeça do Buda quebrou e saiu rolando pela sala. Era uma mensagem e um presságio. “Se encontrar o Buda no caminho, mate-o”, diz um ensinamento budista. O tempo urgia e a vaca murgia. Estava na hora de me desligar do trabalho do EEU. Fui correr no parque do Ibirapuera. Era feriado de 07 de setembro de 2011. Coloquei os fones para ouvir música, mas só conseguia ouvir meus pensamentos. Estava reclamando de tudo e de todos. Começou uma conversa mental mais ou menos assim:

— Está curtindo essa lamúria?

— Não, está uma bosta.

— Está reclamando do quê?

— De tudo e de todos.

— E reclamar está ajudando?

— Não, mas o que mais posso fazer?

— O que você quer fazer?

— Quero fazer o que acho certo.

— Então faz!

— Dentro do EEU não é possível, pois é um trabalho alicerçado na religião e não é meu, sou só um funcionário, não estou na posição de mudar porra nenhuma!

— Então, sai e cria seu trabalho do seu jeito.

— Já não tenho o apoio da ciência, que está atolada no materialismo, se sair, vou perder o apoio da espiritualidade também, que está atolada na religião e na crendice.

— Sim e daí?

— Daí que vou ser uma voz clamando no deserto.

— E o que você prefere: reclamar no deserto ou clamar no deserto?

A retirada do prefixo “re” transformou meu entendimento. Foi como se uma tempestade tivesse terminado e o céu começasse a se abrir. O mundo não era mais um pântano tão monstruoso.

— Prefiro falar e fazer o que acho certo, mesmo que for para ninguém. Pau no cu do materialismo científico e da espiritualidade decoreba. Quero que se fodam!

Uma parte da questão estava resolvida. Faltava outra parte.

— Já cortei a cabeça do Buda. Vou ter que cortar também a cabeça de Jesus, do Samael, do Kardeck, de Joaquim, de Newton, de Einstein, de Platão e o caralho a quatro. Esses caras são os grandes mestres da humanidade! E quem sou eu na fila do pão?

— Simples: você não é os outros. Você é você, exclusivamente você, singularmente você.

— Sim, mas em que isso me ajuda?

— Não tente ser alguém na fila do pão, apenas seja você. Não se compare com quem está na frente da fila, nem com quem está atrás. Cada ser na fila é um ser diferente, com um destino diferente. Ninguém pode ficar no seu lugar na fila e comprar seu pão. Você não pode ficar no lugar do outro e comprar o pão do outro. Só cada um pode caminhar por si e comprar o próprio pão.

— E as besteiras que os outros falam?

— Se você acha que o pão do outro é bolorento, não coloque fermento nele. Só isso! O pão do outro não é problema seu. E não importa quem é esse outro, basta você saber que é outro, logo, não é você, logo, o problema dele não é seu. Segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é sombra de árvores alheias.

— E o que dirão?

— E desde quando você se importa com o que dirão? Vão falar que você não é nada. Vão falar que você não tem casa. Vão falar que você não merece, que anda bebendo, está perdido. E não importa o que você dissesse. Você seria desmentido. Vão falar que você usa drogas e diz coisas sem sentido. Se você for ligar para o que vão falar, não fará nada.

— E as pedradas?

— Você nasceu para satisfazer as expectativas dos outros?

— Não!

— Então, não tente, apenas siga em frente. Os cães ladram enquanto a caravana passa. Com o tempo você ouvirá os latidos como rojões de comemoração celebrando seu avanço.

— Daí simplificou, é só eu ser eu.

— Ao máximo! Até o fim! Sem economia, pooooorra! Se for para duvidar, duvide do impossível, dos limites, das regras, dos medos. Duvide de quem duvida de você. Duvide de quem duvida das pernas sem nunca ter levantado a bunda da cadeira. Duvide de quem duvida da luz sem nunca ter aberto os olhos. Mesmo que for errado, que der em nada, acredite em você, só de curioso, só para ver onde você é capaz de se levar.

Claro que essa conversa não aconteceu com essas palavras. Cobri de redondilhas para aumentar o sabor da leitura. Mas imagina como me senti dizendo tudo isso para mim? Foi como se tivesse tirado um piano das minhas costas. O outro não é problema meu. Puta que pariu! Que libertação! Uma alegria me inflamou e comecei a gritar enquanto corria entre as gigantescas árvores do Ibirapuera:

— Eu clamo no deserto! Eu claaaaaaaaaamo no deserto!

Quando cheguei em casa, mandei um email para o grupo do EEU dizendo que estava saindo do trabalho do EEU, que iria começar um trabalho novo e se alguém tivesse interesse, bastava entrar em contato.

No dia 08 de setembro de 2011, comecei a clamar no deserto.

FIM DESSA TEMPORADA

Foi 40 dias escrevendo um capítulo por dia. Contei a história da criação da 1ficina, desde meu primeiro interesse por autoconhecimento até o dia do nascimento. Na próxima temporada, conto como fui estruturando o trabalho até agora. Está bom de contação por enquanto.

Não acredito mais
em tudo que acreditei
Não sigo a lei
do mais forte
nem a sorte
Minha religião
é aqui
é agora
Sou presidente
de mim
Digo sim
Digo não
Sou o dono
da minha opção
Simples assim!
O que é certo pra mim
não serve em você
O que serve em você
não é certo pra mim
Simples assim!

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