Cântico Negro

27/11/2023 by in category Capitulos, Teime tagged as , , with 0 and 0

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom se eu os ouvisse quando me dizem: “vem por aqui”! Eu olho-os com olhos lassos, (há, nos meus olhos, ironias e cansaços). E cruzo os braços, e nunca vou por ali. A minha glória é esta: criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos. Se ao que busco saber nenhum de vós responde, por que me repetis: “vem por aqui”? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos, a ir por aí…

Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens, e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem para eu derrubar os meus obstáculos? Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, amo os abismos, as torrentes, os desertos.

Ide! tendes estradas, tendes jardins, tendes canteiros, tendes pátrias, tendes tetos, e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios. Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios. Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; mas eu, que nunca principio nem acabo, nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: “vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou. Não sei por onde vou, não sei para onde vou, — sei que não vou por aí.

© 2025 • 1FICINA • Marcelo Ferrari