Fotografia do significado

26/10/2021 by in category Capitulos, Dilema do objetivo, Realidade multimídia, Textos tagged as , , with 0 and 0

Em um dos mais famosos textos do filósofo Platão, intitulado Hípias Maior, Sócrates questiona seu interlocutor sobre a beleza. A pergunta de Sócrates é: o que é o belo? O texto termina sem resposta objetiva. E por que? Simples! Porque beleza é significado e significado é sempre subjetivo, pessoal, relativo, particular, nunca é objetivo.

Por mais estranho que possa parecer, não existe beleza no mundo, só existe mundo. Objetivamente falando, uma flor não é bela, uma flor é uma flor, o canto do rouxinol não é bonito, o canto do rouxinol é o canto do rouxinol. Não existem significados na realidade objetiva, só existem significantes, formas, objetos. Os significados que você vê constantemente no mundo, não estão no mundo, é projeção da sua memória pessoal.

Se você ainda não está consciente disso, se você ainda confunde significante e significado, tem um jeito muito fácil de você sair da confusão. Pegue seu telefone celular e ligue a câmera. Tudo que você conseguir fotografar, está no mundo, é significante. Tudo que você não conseguir fotografar, está dentro da sua cabeça, é significado.

Se você considera o Elvis Presley bonito, pegue o celular e tente fotografar a beleza do Elvis Presley. É impossível. Você só conseguirá fotografar o Elvis Presley, pois beleza é significado, não é significante. Se você considera errado roubar, pegue o celular e tente fotografar o errado. É impossível. Você só conseguirá fotografar pessoas roubando, pois errado é significado, não é significante. Se você considera chocolate gostoso, pegue o celular e tente fotografar o gostoso. É impossível. Você só conseguirá fotografar bombons e barras de chocolate, pois gostoso é significado, não é significante. É por isso que pessoas diferentes veem significados diferentes em um mesmo objeto (significante), o significado não está no objeto, está dentro da cabeça das pessoas.

Entendido isso, para viver bem, é fundamental estar consciente também que o significado que você projeta no mundo está intimamente ligado a cultura em que você foi criado. Uma vaca, por exemplo, significa religião para um indiano, mas significa churrasco para um brasileiro. Qual é o significado certo? Qual é o significado objetivo? Qual é o significado absoluto? Nenhum. Não existe significado objetivo e absoluto, significado é sempre subjetivo e pessoal.

Vaca não é religião, nem churrasco. Vaca é vaca. Mas na cultura indiana uma vaca significa religião e na cultura brasileira uma vaca significa churrasco. Então, pessoas que foram criadas na cultura indiana irão projetar o significado de religião e idolatrar a vaca, e pessoas de cultura brasileira irão projetar o significado de churrasco e comer a vaca.

Até aí, tudo bem! Projetar o significado da cultura em que você foi criado é natural e inevitável, não tem nenhum mal nisso. O mal viver começa quando você ignora que o significado projetado é projeção sua. Quando você ignora isso, você cai no equívoco de acreditar que o significado que você está projetando está objetivamente no mundo, logo, todas as pessoas devem ver o mesmo significado que você está vendo. Não bastasse isso, o outro, também ignorante do processo de projeção de significado, vai fazer o mesmo com você, tentando impor o significado dele a você. Entende como a convivência ignorante do processo de projeção do significado se torna uma conversa de surdo mudo?

O filme Silêncio mostra isso. Para os portugueses, a cruz é sagrada, pois eles foram criados em uma cultura cristã. Para os japoneses, a cruz é demoníaca, pois eles foram criados em uma cultura budista. A cruz é sagrada ou demoníaca? Nem sagrada, nem demoníaca. A cruz é cruz. Sagrado e demoníaco são projeção de significado. Se você considera a cruz sagrada, pegue o celular e tente fotografar o sagrado. É impossível. Você só conseguirá fotografar uma cruz, pois sagrado é significado, não é significante.

© 2023 • 1FICINA • Marcelo Ferrari