15 | VENTRÍLOQUO DE SABONETE

31/08/2022 by in category Mayasang with 0 and 0

Quando fui fazer a viagem dos meus sonhos (ou pesadelos) pelo nordeste, não pedi demissão apenas para viajar, pretendia arranjar emprego numa grande agência de publicidade quando voltasse. Então, assim que voltei, montei um portfólio e comecei a rodar as agências de São Paulo. Rapidamente arranjei um estágio e durante um ano fui pulando de estágio em estágio pelas maiores agências da época. Por fim, fui contratado por uma agência de médio porte.

Um dia, chegou na minha mesa um job (ordem de serviço) para fazer um comercial para um título de capitalização. Eu conhecia o produto e o gerente do produto. Então, sem pensar duas vezes, fui até a sala do meu chefe e pedi para ele passar aquele job para outra equipe.

— Como assim? — perguntou meu chefe.

— Conheço esse produto, não gosto dele nem do gerente dele — eu disse.

— Aqui não escolhemos clientes e produtos — disse meu chefe.

— A Talent não faz propaganda de cigarros — eu argumentei. Talent era uma das mais famosas agências de publicidade da época. Famosa inclusive por não fazer propaganda de cigarros.

— Aqui não é a Talent — disse meu chefe.

Percebi que não teria sucesso na continuidade do meu argumento.

— Ok, se puder passar esse job para outra equipe, eu agradeço.

No dia seguinte, meu chefe esfregou a verdade sobre a mentira na minha cara:

— Publicidade não é lugar para ter crise de consciência. Se os seus critérios éticos e morais são prioridade para você, então, você escolheu a profissão errada. Eu gosto do seu trabalho. Dessa vez vou passar o job para outra equipe. Mas é só dessa vez.

Uma semana depois, recebi um job de pinga. Ri sozinho. Só podia ser ironia do destino. Fui tentar escrever algo, mas quando olhava para a tela do computador só conseguia ver as merdas que havia feito embriagado. Pedir ao meu chefe para passar aquele job para outra equipe era o mesmo que pedir demissão. Então, me obrigava a escrever algo. Só que a mão não respondia. Dedos paralisados. Por fim, pisando em ovos, fui até a sala do meu chefe. Mostrei o job de pinga e disse:

— Pode passar esse job para outra equipe?

— Puta que pariu! — ele exclamou — Não acredito que está me pedindo isso!

Fiz cara de “por favor”, mas não convenceu.

— Pede demissão logo, porra! — meu chefe disse, lendo meu pensamento.

Em menos de dois anos de profissão, já estava farto de ser ventríloquo de sabonete, ventríloquo de macarrão, ventríloquo de bolacha, ventríloquo de pasta de dente, e naquele momento, ventríloquo de pinga. Adorava criação, mas não precisava usar minha criatividade para dar voz ao que os clientes queriam que eu dissesse, podia usá-la para dar voz ao que eu queria dizer.

Pedi demissão, porra!

Geração Coca-Cola – Legião Urbana

© 2023 • 1FICINA • Marcelo Ferrari