Segunda pergunta

10/11/2022 by in category Capitulos, Duas perguntas with 0 and 0

VOCÊ É LIVRE?

Beto convida Cristina para ir ao playground. Eles se aproximam da gangorra. Beto senta de um lado, Cristina senta do outro, e com a diferença de peso, Cristina sobe aos céus e Beto desce ao chão.

— Cristina, por que você subiu e eu desci?
— Você é mais pesado do que eu.
— O que é nosso peso?
— São características do nosso corpo.
— Você consegue mudar meu peso?
— Não.
— Você consegue mudar seu peso?
— Também não.
— Nem eu!
— Esta é a segunda pergunta?
— É metade da segunda pergunta, é um pedaço dela. A segunda pergunta é: Você é livre?
— Sou!
— Você é livre para mudar seu peso?
— Neste caso, não.
— Você é livre para mudar meu peso?
— Neste caso, também não.
— Então, o que está te segurando aí?
— Nossas características individuais.
— Nossa relação não depende só do nosso desejo, depende de nossas características individuais. Por mais que eu queira subir e você descer, não adianta, nossas características individuais não permitem.
— Então, não somos livres?
— Em relação às nossas características individuais, não. Essa liberdade não temos.
— Então, a segunda pergunta é para tomarmos consciência que não podemos mudar nossas características individuais, nem as consequências delas nos relacionamentos?
— Exato! A experiência humana é um brinquedo e quem determina grande parte do nosso funcionamento dentro do brinquedo é a natureza do brinquedo e nossas características individuais.
— Entendi. Mas em que entender isso ajuda nos relacionamentos?
— Por exemplo, você é mulher e eu sou homem, não é?
— Sim, temos características físicas e psicológicas distintas, é isso?
— Exato! E se esqueço que você não é livre para mudar suas características individuais e desejo que mude, o que acontece?
— Você vai ficar frustrado.
— Muito pior! Vou fazer da sua vida um inferno até que você se transforme no meu ideal. E vou fazer um inferno da minha vida também, porque tentar realizar o impossível só gera estresse.
— Daí eu te faço a pergunta?
— Sim, por favor, senão só vamos alimentar estresse desnecessário. Quando eu me esquecer, você me lembra, quando você se esquecer, eu te lembro.
— Combinado. Mas você disse que isso era só metade da segunda pergunta.
— Isso mesmo!
— Qual é a outra metade?
— Você quer descer na gangorra?
— Sim.
— Problema seu!
— Sem graça!
— Lembra que você me perguntou porque não fazemos a primeira pergunta? O motivo é que não temos maturidade para ouvir a resposta, então, não fazemos a primeira pergunta.
— Como assim?
— Você tem obrigação de realizar meu desejo?
— Não! Obrigação eu não tenho.
— Nem eu tenho obrigação de realizar o seu. Por isto disse “problema seu”. Seu desejo de descer na gangorra é seu, não é meu, logo, o problema é seu.
— Mas se você não colaborar com meu desejo, como vou descer?
— Usando sua liberdade de realizar seu desejo. Sua liberdade é sua. Minha liberdade é minha. Você é livre. Eu também.
— Mas tenho que aceitar sua liberdade de não colaborar comigo?
— Não. Você não “tem que” aceitar minha liberdade, você é livre para aceitar ou não. Mas se minha liberdade é minha, o que mais você pode fazer?
— Posso me mover na gangorra e alterar nosso equilíbrio.
— Ótimo! Isso é você usando sua liberdade de realizar seu desejo, não é?
— Sim, mas e se não funcionar, é justo meu desejo perder do seu?
— Mesmo quando não funciona, você continua tendo liberdade de tentar outra opção, e outra, e outra. Sua liberdade de optar nunca acaba.
— Minha liberdade nunca acaba?!!
— Nunca, pois não optar também é uma opção.
— Sensacional!
— Sensacional mesmo! Mas ainda não acabou. Tem um outro aspecto na brincadeira da liberdade.
— Qual é?
— Dizer não é dizer sim.
— Como assim?
— Quando lhe digo “não”, não estou indo contra a realização do seu desejo, estou indo a favor da realização do meu. Meu desejo não é ganhar do seu desejo, meu desejo é realizar o meu desejo. Dizer não é dizer sim para mim.

Beto dá um impulso alterando o equilíbrio da gangorra. Seu lado sobe e o lado de Cristina desce. Vice-versa. Versa-vice. E assim por diante. Eles ficam brincando de liberdade.

— A pergunta “Você é livre?” tem dois propósitos, — Cristina diz — um é nos lembrar de uma liberdade que não temos, mas acreditamos ter, outro é nos fazer lembrar de uma liberdade que temos, mas esquecemos que temos?
— Isso mesmo! — Beto responde.
— Acabaram-se as perguntas?
— Tem mais uma.
— Pode fazer.
— Quer brincar de liberdade comigo?
— Sim! — Cristina responde.
— Eu também. — Beto responde.

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