Segunda parte

11/11/2022 by in category Capitulos, Quatrolência with 0 and 0

PARTICIPANTE: Como um pai pode ser violento com um filho que ama?

O filme Sociedade dos Poetas Mortos dá um exemplo disso. O pai queria que o filho fosse médico. Colocou todo o amor dele naquele ato de obrigar o filho a ser médico. Os pais violentam os filhos por amor. Eles acreditam que estão fazendo bem aos filhos. É um equívoco sincero, bem intencionado, mas é um equívoco. Nenhum pai acha que está violentando o filho. Os pais acreditam que estão fazendo o melhor, que estão educando os filhos. Mas educação sem diálogo, na base da imposição, sem entender que o filho é outro, diferente, que tem unicidade própria, não é bom para o filho nem para os pais, pois gera má convivência. Não adianta você educar um gato para botar ovos. Por mais amor que você coloque nessa tentativa, você vai estar violentando o gato, pois gato não bota ovos, não é da natureza dele. A unicidade de cada um é a natureza de cada um. Se o seu filho tem natureza de gato, seu filho jamais irá botar ovos. Ele só vai fingir que bota e ainda vai ficar magoado com você.

PARTICIPANTE: Se ignoramos nossa unicidade, como saber da unicidade dos outros?

Exato! Violamos a unicidade dos outros porque ignoramos nossa própria. Percebe a sutileza? Violência nem é o assunto. É só auxílio ao assunto. O assunto mesmo é a ignorância. A ignorância é a raiz da violência. Se ignoramos nossa própria unicidade, como lidar bem com a unicidade do outro? Impossível.

PARTICIPANTE: A violência é uma bola de neve. Eu violento você, você me violenta de volta. E a bola de neve vai aumentando.

Isso mesmo! Mas não sabemos viver de outro jeito. Só sabemos jogar o jogo da violência, que é oscilar entre opressor e oprimido, violentado e violentador. Nossa mentalidade coletiva diz que liberdade é estar na posição de opressor, violentador, controlador, etc. Escravidão é estar na posição de oprimido, controlado, violentado. Quando você está sendo violentado, você é prisioneiro, o outro está te dominando, então, você deve buscar liberdade se tornando o opressor do opressor. E assim por diante, até o topo da pirâmide do controle, onde você pode controlar todos e ninguém pode controlar você. Daí você é absolutamente livre. Isso é um equívoco. Vamos estudá-lo em breve.

PARTICIPANTE: A solução é o respeito?

Não! A solução é lucidez. Respeito é desdobramento da lucidez. A palavra respeito só serve de gasolina para perpetuação da violência. Todo mundo quer ser respeitado, mas ninguém respeita ninguém. Respeito não se pede, respeito se dá. Quando você pede respeito, na verdade, o que você está pedindo é que o outro reze sua cartilha. Isso não é respeito, isso é violência. Quando você realmente respeita, você respeita inclusive o desrespeito. Mas ninguém respeita o desrespeito. Respeitar o desrespeito é a história de oferecer a outra face. Quem oferece a outra face?

PARTICIPANTE: Como inibir a violência do outro?

Olha aí o problema pintado de solução! Inibir a violência do outro é usar a violência para acabar com a violência. É tentar apagar o fogo jogando gasolina. É impossível inibir a violência do outro. Você pode tentar. Mas essa tentativa é você violentando o outro.

PARTICIPANTE: Por que o outro viola minha unicidade?

Porque o outro ignora sua própria unicidade (dele mesmo).

PARTICIPANTE: A violência está por todo lado.

A violência é o alicerce da nossa sociedade. Nosso sistema jurídico se chama “sistema penal”, ou seja, é a regulamentação da violência.

PARTICIPANTE: Acreditamos que estamos fazendo o melhor.

Exato! Não somos violentos por maldade. Somos equivocados sinceros. Todo pai e toda mãe, ao violar a unicidade do filho, acredita que está executando um ato de amor. Por isso que o problema não está na violência, mas no que vem antes, na ignorância de si. Quando você entende que você é uma unicidade, diferente do outro, automaticamente você entende que o outro também é uma unicidade, diferente de você. Entende também, que por serem diferentes, o que é melhor para você é diferente do que é melhor para o outro e vice versa.

PARTICIPANTE: No filme do super homem, ele fica em dúvida se deve interferir ou não na vida dos humanos. Eu acho que esse é o problema: interferência. A gente acha que é o super-homem e interfere na vida do outro, impõe para os filhos nosso modo, e assim segue uma geração após a outra.

O problema não é a interferência. O problema é que não consideramos o outro como sendo outro. Falamos em “outro”, mas só falamos, é só uma palavra vazia. Consideramos o outro como extensão de nós mesmos, feito um sapato, um garfo, uma mochila, um chaveiro. Ou seja, uma coisa sem vontade e sem unicidade. Pensamos no outro como um robô que só existe para satisfazer nossos desejos e expectativas. Então, o problema não é a interferência. O problema é a ignorância da unicidade. Se entendêssemos o outro como sendo outro, não haveria como existir violência. Vamos supor que você vai almoçar com seus colegas de trabalho. Você come feijoada. No caminho de volta a feijoada começa a borbulhar no seu estômago. Sua barriga vai ficando inchada. Você entra no elevador com a turma e você tem duas opções: peidar ou morrer. Para não morrer, você decide peidar. Seus companheiros de trabalho não têm para onde fugir. Elevador não tem janela. Pergunto: você interferiu na experiência dos seus companheiros de trabalho?

PARTICIPANTE: Sim, interferi.

Você acha que interferiu pouco ou muito?

PARTICIPANTE: Bastante.

Você acha que eles prefeririam a interferência do super homem ou a sua?

PARTICIPANTE: Do super homem.

Criei essa imagem para deixar bem explícito que interferir é inevitável. Não é opcional. A qualidade da sua interferência que é opcional. Foi exatamente o que o super homem entendeu. Não fazer nada é um tipo de interferência. Fazer alguma coisa é outro tipo de interferência. Autoísmo é um jeito de você interferir na convivência. Outroísmo é outro jeito. Interferir é inevitável. Se sua interferência é outroísta ou autoísta, isso sim é opcional.

PARTICIPANTE: Quando sou humilhado tenho que aceitar a humilhação. Isso é respeitar?

Respeito é desdobramento da lucidez, não da autoimposição. Respeito por autoimposição é fingimento. Você só é capaz de executar o respeito quando está consciente do ciclo vicioso da violência. Uma vez consciente, para não perpetuá-lo, você executa o respeito. Então, quando uma pessoa te humilha, não adianta você pensar assim: “Como aprendi que respeitar é a opção que quebra o ciclo vicioso da violência, vou aceitar essa humilhação”. Isso não funciona. Você continua no ciclo vicioso da violência. Você está se obrigando a fazer uma coisa que não quer e não entende. Você está violentando seu nível de consciência. Você não tem lucidez suficiente para executar o respeito, assim como um surdo não tem audição para cantar afinado. Então, assim como não funciona o surdo se obrigar a cantar afinado, também não adianta você se obrigar a respeitar. A solução para o surdo cantar afinado é recuperar a audição. A solução para você executar o respeito é despertar a consciência para sua unicidade.

Lembra da conversa sobre medicina preventiva e medicina curativa? É isso! Como não temos lucidez ainda, vamos para gangorra da violência quase sempre. 99% das vezes. Daí o jeito é praticar medicina curativa para sair da gangorra. Saímos. A lucidez aumenta 1%. Ótimo! Agora vamos para gangorra 98% das vezes. Melhoramos. Mas ainda caímos na gangorra. O jeito é praticar medicina curativa de novo. Saímos de novo. A lucidez aumenta para 2%. Ótimo! Agora vamos para gangorra 97% das vezes. Melhoramos mais um pouco. Porém, ainda caímos na gangorra. O jeito é praticar medicina curativa de novo. E assim por diante. Até ficarmos mestres em viver bem. Daí, ao invés de medicina curativa, passamos a praticar medicina preventiva.

PARTICIPANTE: Qual é a ligação da violência com o outroísmo?

Outroísmo é violência. Atenção! Não é que outroísmo gera violência. Outroísmo é violência. Outroísmo é tentar uniformizar o outro, fazer o outro igual a você e vice-versa. Um tentando uniformizar o outro é violência. Então, embora não tenhamos consciência disso, estamos a todo instante sendo estimulados e estimulando nossa coletividade a perpetuar a violência. E pior! Fazemos isso falando de amor, paz, respeito, educação e várias outras palavras que são apenas disfarces para violência.

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