Adão em crise

16/04/2017 by in category Mestre da felicidade, Textos tagged as , , with 0 and 0

— O que está acontecendo? — Adão me pergunta.
— Como assim, Adão?
— Essa crise que estou experimentando, de onde vem isso?
— De que crise você está falando?
— Essa aqui que estou sentindo na pele e dentro dela. Aliás, crises, no plural. Um monte delas acontecendo simultaneamente. Crise de fome, crise de sede, crise de nervos, crise de ciúmes, crise de asma, crise de choro, crise de felicidade, crise de consciência, crise de pânico, crise existencial. Que loucura é essa? De onde vem tanta crise? Onde fica o botão que desliga tudo? Cadê o paraíso?
— É assim mesmo, Adão. E não tem botão de desligar. Apenas respire e procure ficar calmo.
— Respirar??? O que é isso?
— Você percebe que tem ar entrando e saindo do seu nariz?
— Sim, percebo.
— Isso é respirar. Continue fazendo isso com tranquilidade. Vai lhe ajudar a ficar calmo.
— Mas nunca perdi a calma antes, sempre vivi em paz, em estado paradisíaco. Por que isso agora? No paraíso não tem estresse. Zero crise. Tudo sempre é automático e imediato. Absoluta satisfação. Todos meus desejos realizados sem que sequer precise pensar neles. Não preciso nem respirar. Temperatura ideal, alimentação ideal. Eterna sombra e água fresca. Tudo customizado para me atender. Mas, de repente, abro os olhos e você já me lasca um tapa na bunda. Daí, além de experimentar dor, coisa que nunca senti antes, ainda tenho que respirar! Que inferno é esse?
— Não é inferno, Adão, é a vida fora do útero.
— Que útero?!
— Útero é o lugar onde você estava, onde não precisa fazer nada, pois a comida vem de canudinho. Útero é o paraíso.
— Eu saí do Paraíso! Por que? Eu fiz alguma coisa errada?
— Você não fez nada errado! Você decidiu nascer, só isso! Eu sou o médico que te ajudou nesse processo. Dei um tapa na sua bunda para que doesse e com o choro você começasse a respirar.
— Então, essa crise de nervos que estou sentindo, é dor?
— Sim! Pode ir se acostumando.
— E preciso respirar?
— Sim, a partir de agora você precisará respirar o tempo todo, sem parar.
— E todas essas outras crises que estou experimentando, como fica? Num piscar de olhos foi como se todos meus cartões de crédito fossem bloqueados. Fui despejado e acabaram todas minhas mordomias.
— São crises, mas não são exceção. Crise é a regra, é o natural, é a vida fora do útero. Você decidiu sair do automático e experimentar a autonomia, então, a partir de agora, não tem mais mordomia, ou você cuida de si ou vai ficar descuidado.
— Credo! E deus? Deus não vai mais cuidar de mim.
— O deus que cuidava de você no automático era o útero. Você decidiu sair do útero e experimentar a autonomia, então, agora você deve ser deus de si mesmo, ou seja, você deve prover seu próprio bem.
— E se eu não fizer isso?
— Como lhe disse, se você não cuidar de si, ficará descuidado. Então, se não prover seu próprio bem, estará se condenando a viver mal.
— Que crueldade!
— Não é crueldade, é autonomia. Se preferir: responsabilidade.
— Quer dizer que a vida fora do útero é constante crise? E tenho que gerenciar minhas crises o tempo todo e sozinho?
— Exatamente! É uma crise constante, do começo até o fim, e você tem que lidar com isso sozinho.
— Do começo ao fim! Então, quer dizer que tem fim?
— Sim, tem começo, meio e fim. E se você não se cuidar bem, o fim chega bem rápido.
— Sua explicação da vida fora do útero é bem pessimista.
— Não é pessimista, nem otimista, é apenas a descrição do funcionamento. Quando cheguei aqui também levei o mesmo choque que você está levando agora.
— E o que fez?
— Primeiro eu passei pelas quatro fases dos recém nascidos: negação, raiva, barganha e depressão. Neguei a vida fora do útero, fiquei com raiva de viver em crise, tentei barganhar para que alguém voltasse a cuidar de mim e entrei em depressão por fracassar em todas essas estratégias.
— E depois disso?
— Quando ficou óbvio que fugir só piorava, entrei na fase da aceitação.
— Você aceitou o que?
— Aceitei a crise constante e a responsabilidade por gerencia-las.
— Mas você não tinha outra opção.
— Tinha sim, tinha quatro opções: negação, raiva, barganha e depressão. Nenhuma resolvia, mas eram opções. Fiquei um bom tempo em cada uma e muitas vezes ainda volto nelas, mas como agora sei que não resolvem nada, só pioram, saio rápido.
— Se entendi bem, viver fora do útero é viver em crise e aprender a lidar bem com isso?
— Sim! Só isso e sempre isso.
— E como faz para voltar para o útero?
— Não faz!

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